Na noite de consoada a saudade veio de mansinho instalar-se no meu pensamento. E encontrei-me só, perdido em noites de leitura na minha velha cama de menino. Eram as aventuras do major alvega de princípe valente e do tarzan. A escutar o último autocarro a subir em esforço a avenida. Irado vou para a janela e fumo mais um cigarro. Engulo o fumo e depois faço-o sair em circunsferências nem sempre perfeitas. Olho a paisagem de carroos dormentes na praceta mal iluminada. Mesmo que não o deseje tenho de enfrentar a saudade. Que poderei eu fazer senão guardar-te na retina. Encontrar-nos-emos na morte, esse lugar cheio do tudo acabado. Que falta que tu me fazes, Mãe.
quinta-feira, dezembro 28, 2006
quarta-feira, dezembro 27, 2006
quarto dos brinquedos
Aconteceu-me a meio da tarde ser sequestrado pelos jovens sobrinhos no quarto de brincar e ser obrigado a ler a história da Anita e os fantasmas com interrupções pelo meio de um que queria pôr-se às cavalitas e outro que desejava exercitar os seus dotes de kung-fu entre gritos de guerreiros e risos incontidos. Às tantas, os miúdos desligaram a luz , ligaram o leitor de cd's e forçaram-me a acompanhá-los ao ritmo do hip-hop. Foi pena, o sequestro ter durado pouco tempo. Sequestro como este deixam a memória com um manancial de lembranças.
domingo, dezembro 24, 2006
imagine...
(by John Lennon)
Imagine there's no heaven
It's easy if you try
Nowhere below us
Above only sky
Imagine all the people
Living for today...
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
sábado, dezembro 23, 2006
o natal na clandestinidade?
Nas últimas semanas os meios de comunicação (pelo menos, a escrita) vem repetindo as mesmas palavras, os mesmos "recados", sobre a nova ideia, absurda e perigosa, noticiada no diário britânico The Guardian relativa a uma alegada campanha de católicos e da direita, súbditos de Sua Majestade, a favor do "fim da celebração do Natal"(!). Não o fim em si mesmo mas um fim na sua "exposição" pública, sob o pretexto de "não ofender"(!) ritos de outras religiões. Quer dizer: celebrar a festa católica do Natal sim, mas o mais discretamente possível!. De preferência na clandestinidade!
Num mundo marcado cada vez mais pela ausência total de perspectivas o objectivos sociais e políticos uma proposta deste calibre -diga-se, surpreendentemente urdida- serve antes de mais para caracterizar a mentalidade actual de certos poderes em se disporem a "reeducar" as massas sobre aquilo que é ou não "conveniente" e "políticamente correcto".
Só pode tratar-se de uma ficção com propósitos publicitários à escala mundial,da consequência do estado de demência avançada de quem se lembrou duma atordoada destas ou, na pior das hipóteses, da primeira grande estocada de um qualquer lobbie islâmico a dominar as sociedades ocidentais, sem dispararem um único tiro ou deflagarem bombas.
A paranóia está instalada e tem já seguidores zelosos -na Grã-Bretanha, Espanha, Estados Unidos- que mandaram suprimir referências ao Natal nos cartões da época; em escolas (Saragoça) e até em aeroportos estadounidenses de onde terão sido mandadas retirar as tradicionais árvores de natal!.
Lembro-me, que de outra vez ( aquando da morte do capitalismo de Estado a Leste) falou-se em "fim da História". Viu-se aonde queriam chegar de facto os novos ideolólogos da capitalismo neoliberal com tamanho disparate.
Num mundo marcado cada vez mais pela ausência total de perspectivas o objectivos sociais e políticos uma proposta deste calibre -diga-se, surpreendentemente urdida- serve antes de mais para caracterizar a mentalidade actual de certos poderes em se disporem a "reeducar" as massas sobre aquilo que é ou não "conveniente" e "políticamente correcto".
Só pode tratar-se de uma ficção com propósitos publicitários à escala mundial,da consequência do estado de demência avançada de quem se lembrou duma atordoada destas ou, na pior das hipóteses, da primeira grande estocada de um qualquer lobbie islâmico a dominar as sociedades ocidentais, sem dispararem um único tiro ou deflagarem bombas.
A paranóia está instalada e tem já seguidores zelosos -na Grã-Bretanha, Espanha, Estados Unidos- que mandaram suprimir referências ao Natal nos cartões da época; em escolas (Saragoça) e até em aeroportos estadounidenses de onde terão sido mandadas retirar as tradicionais árvores de natal!.
Lembro-me, que de outra vez ( aquando da morte do capitalismo de Estado a Leste) falou-se em "fim da História". Viu-se aonde queriam chegar de facto os novos ideolólogos da capitalismo neoliberal com tamanho disparate.
quarta-feira, dezembro 20, 2006
ofícios
Every single empire in its official discourse has said that it is not like all the others, that its circumstances are special, that it has a mission to enlighten, civilize, bring order and democracy, and that it uses force only as a last resort. And, sadder still, there always is a chorus of willing intellectuals to say calming words about benign or altruistic empires.
Edward W. Said - "Orientalism 25 Years Later," Counterpunch.org website, 4 August 2003.
segunda-feira, dezembro 18, 2006
reflexão nocturna
Fui sempre um leitor sôfrego, mesmo que agora não o seja tanto quanto desejaria.
Tenho-me interrogado, desde a morte de minha mãe, sobre o que teria mudado na minha vida de adulto se tivesse nos últimos trinta anos sido capaz de manter a mesma relação que até á adolescência mantive com os livros. Não apenas porque a leitura me criou a obrigação desde cedo (necessária) ao acto da própria escrita mas porque eu era uma pessoa que havia descoberto na literatura uma forma perfeita de lidar com a minha ligação com o mundo e outra data de coisas que me assaltavam a consciência.
Nunca fui capaz de entender a literatura como um mero entretém ou outro disparate qualquer. Alguns dos livros que li quando adolescente mudaram o rumo da minha vida outros foram um completo embuste. Em certo momento, aconteceu que os livros tomaram conta de mim e eu correspondi-lhes com espírito "de missão". Deixei que os livros (alguns dos livros) entrassem na minha vida interior com glória.
Os livros que eu nunca mais quis (re)ler esqueci-os por completo. Como acontece(u) com alguns amigos que, afinal, não eram nem nunca foram amigos porque foram incapazes de manter a relação em momentos agudos da vida. Provavelmente por medo.
Tenho-me interrogado, desde a morte de minha mãe, sobre o que teria mudado na minha vida de adulto se tivesse nos últimos trinta anos sido capaz de manter a mesma relação que até á adolescência mantive com os livros. Não apenas porque a leitura me criou a obrigação desde cedo (necessária) ao acto da própria escrita mas porque eu era uma pessoa que havia descoberto na literatura uma forma perfeita de lidar com a minha ligação com o mundo e outra data de coisas que me assaltavam a consciência.
Nunca fui capaz de entender a literatura como um mero entretém ou outro disparate qualquer. Alguns dos livros que li quando adolescente mudaram o rumo da minha vida outros foram um completo embuste. Em certo momento, aconteceu que os livros tomaram conta de mim e eu correspondi-lhes com espírito "de missão". Deixei que os livros (alguns dos livros) entrassem na minha vida interior com glória.
Os livros que eu nunca mais quis (re)ler esqueci-os por completo. Como acontece(u) com alguns amigos que, afinal, não eram nem nunca foram amigos porque foram incapazes de manter a relação em momentos agudos da vida. Provavelmente por medo.
domingo, dezembro 17, 2006
in memoriam de Lopes Graça
A 25 de Abril de 1974, eramos jovens e inocentes, -nem tanto.
Viviamos sob o signo da utopia, do mundo novo que "estava ali" ao virar da esquina, julgavamos nós. Reuniamo-nos nos cafés da zona da Avenida de Roma (o Trevi, a Madrid) para falar dos ideólogos da nova esquerda, do marxismo, do leninismo,do último Godard, da revolução russa, de Stalin (que gerava entre nós muito prurido), de Guevara e Fidel, do Até Amanhã, Camaradas, (que todos sabíamos ser escrito pelo Álvaro), de Lukacs, dos eurocomunistas Carrilho e Berlingueri e do "puro e duro", Lister, dos filmes de Eisenstein, de Vertov e de Poudovkine, da Revolução Francesa, do Irish Republican Army, da Fatah, da contestação à guerra do Vietname de Praga 67, da Insurreição de Budapeste em 56, da Ofensiva de Tet e do exímio general vietnamita,Giap; dos "meetings" no ISE ou em Medicina, das cargas da polícia de choque comandadas pelo capitão Maltês ou pelo Capitão Pereira (que me deu voz de prisão duas vezes em 1973), da Declaração de Independência da Guiné-Bissau transmitida pela rádio Portugal Livre, etc, etc, etc. .
Mas o único motivo de satisfação (ia a escrever , enorme) que nós poderíamos ter vivido estava programado para uma noite memorável de Junho no Coliseu de Lisboa: as canções heróicas de Fernando Lopes Graça.
Lembro-me, perfeitamente, de a sala do Coliseu dos Recreios parecer vir abaixo com a implosão de milhares de vozes em uníssomo: "Vozes ao alto, vozes ao alto /unidos como os dedos da mãos / Havemos de chegar ao fim da noite / Ao som desta canção". Era uma festa, mas uma festa de combate. Em torno de muitas coisas, penso eu.
Lembro-me a propósito das pessoas mais velhas com lágrimas nos olhos darem as mãos às pessoas mais jovens e da fraternidade tomar conta da sala a noite inteira.
O Lopes Graça deixou-nos a todos nessa noite de 74 uma memória e uma lembrança: nunca renunciaremos ao sonho!
sábado, dezembro 16, 2006
elegia de ernesto sampaio
Às voltas com textos do Ernesto Sampaio e a releitura (do seu) "Ideias Lebres", veio parar-me às mãos um depoimento magnificamente sentido de Mário Cesariny, publicado no Público a 7 de Dezembro de 2001, dias depois da morte de Ernesto, a que não resisto partilhar:
"Ernesto Sampaio tinha a grande rebeldia e a grande inteligência. dentro do grupo surrealista, era dos mais lúcidos, dos que mais sabiam, dos mais rebeldes. Um sentido de humor formidável, uma agudeza de espírito extraordinária, amabilíssimo. Era uma figura muito rara, de saber e dedicação. Uma figura grande. Desde a morte de Fernanda Alves, já não sabia viver. É a única pessoa que conheço que morreu de amor".
"Ernesto Sampaio tinha a grande rebeldia e a grande inteligência. dentro do grupo surrealista, era dos mais lúcidos, dos que mais sabiam, dos mais rebeldes. Um sentido de humor formidável, uma agudeza de espírito extraordinária, amabilíssimo. Era uma figura muito rara, de saber e dedicação. Uma figura grande. Desde a morte de Fernanda Alves, já não sabia viver. É a única pessoa que conheço que morreu de amor".
sexta-feira, dezembro 15, 2006
os dias imensos
copyright by FotoAçor
Na abertura oficial do 1º Festival Internacional de Cinema de Angra do Heroísmo, em Novembro de 2002, Leonel Vieira e Karra Elejalde (actor e realizador espanhol) apresentaram ao público da Terceira, que quase esgotou o Teatro Angrense, a mui aguardada produção de "A Selva", adaptação da obra de Ferreira de Castro realizada com apurado sentido criativo e de representação. Reexibido duas vezes durante o Festival, -para os estudantes do secundário e público ansioso- "A Selva" foi também responsável por um convívio inesquecível entre técnicos, produtores, actores, realizadores, organizadores ejornalistas como raras vezes me foi dado sentir em outras manifestações congéneres.
Na abertura oficial do 1º Festival Internacional de Cinema de Angra do Heroísmo, em Novembro de 2002, Leonel Vieira e Karra Elejalde (actor e realizador espanhol) apresentaram ao público da Terceira, que quase esgotou o Teatro Angrense, a mui aguardada produção de "A Selva", adaptação da obra de Ferreira de Castro realizada com apurado sentido criativo e de representação. Reexibido duas vezes durante o Festival, -para os estudantes do secundário e público ansioso- "A Selva" foi também responsável por um convívio inesquecível entre técnicos, produtores, actores, realizadores, organizadores ejornalistas como raras vezes me foi dado sentir em outras manifestações congéneres.
terça-feira, dezembro 12, 2006
a hora de bertolucci
Não será, por certo, o melhor filme de Bertolucci mas é com toda a certeza um dos seus mais lapidares, estreado em Portugal depois da queda da ditadura. No meio de tanto lixo e vulgaridade massificada, não seria má ideia sugerir ao Paulo Trancoso uma edição pack, no mínimo de quatro títulos (o inédito, La commare Secca, Prima Della Rivoluzione, Strategia del Ragno e o ora lembrado Il Conformista), tudo obras-surpresa dos primeiros anos de carreira de Bernardo Bertolucci
No deserto em que se transformou a edição DVD neste país, a Costa do Castelo é a unica réstea de luz que, desde há anos, resiste e nos tem dado a (re)ver uma parte importante da memória do cinema. A Costa do Castelo (a "nossa"pequena Criterium!) é um caso singular de sucesso que merece ser apoiado. Paulo, te(re)mos Bertolucci em 2007 ?!
domingo, dezembro 10, 2006
lei da vida para pinochet
(Foto: Pinochet parece explicar ao Papa, João Paulo II que o visitou em 1987, como se resolve os problemas "em casa")
A lei da vida -a única que pelos vistos foi possível aplicar-lhe- colocou um ponto final na existência de Augusto Pinochet, o todo poderoso ditador que em 11 de Setembro de 1973, apoiado por Kissinger, CIA e uma vintena de Transnacionais norte-americanas, usurpou pela força das armas o poder legítimo do governo de Unidade Popular e assassinou o seu presidente,
- o socialista, não marxista, lembremo-lo- Salvador Allende.
- o socialista, não marxista, lembremo-lo- Salvador Allende.
Pinochet, que mandou assassinar centenas de opositores das mais variadas tendências políticas (comunistas , socialistas, sociais-democratas, radicais de esquerda e até democratas-cristão), foi o autor moral dos atentados (à bomba) contra o general constitucionalista, Pratts, em Buenos Aires, em 1974 e de Orlando Lettelier em Washington, foi o patrono da célebre Operação Condor que uniu todos os ditadores de então no poder da América Latina para uma guerra de terror e extermínio contra milhares de opositores "subversivos".
Pinochet é também o rosto do ódio à cultura e inteligência qaundo ordena a queima pública de livros, de bibliotecas inteiras, (inspiração germânica nazi) nas ruas de Santiago ordem cumprida pela soldadesca nos dias imediatos ao "putsch".
Foi com Allende que o Chile viu renascer a esperança de um novo mundo. Infelizmente, o país era (é ) demasiado rico em recursos para que a voracidade do imperialismo norte-americano permitisse veleidades como as privatizações do aço, do cobre, do salitre; nem sequer a consolidação de um regime democrático de inspiração social-democrata europeia (nórdica) era tolerável.
Nação com grandes tradições democráticas o Chile tem a sua História repleta de contra-revoluções e golpes sangrentos onde o poder da oligarquia se manteve sempre á tona de água.
Pinochet é também o rosto do ódio à cultura e inteligência qaundo ordena a queima pública de livros, de bibliotecas inteiras, (inspiração germânica nazi) nas ruas de Santiago ordem cumprida pela soldadesca nos dias imediatos ao "putsch".
Foi com Allende que o Chile viu renascer a esperança de um novo mundo. Infelizmente, o país era (é ) demasiado rico em recursos para que a voracidade do imperialismo norte-americano permitisse veleidades como as privatizações do aço, do cobre, do salitre; nem sequer a consolidação de um regime democrático de inspiração social-democrata europeia (nórdica) era tolerável.
Nação com grandes tradições democráticas o Chile tem a sua História repleta de contra-revoluções e golpes sangrentos onde o poder da oligarquia se manteve sempre á tona de água.
sexta-feira, dezembro 08, 2006
automatismo
Singing in the Rain (1952), de Stanley Donen
Na brisa fria da tarde de final de Novembro lá vai ele, todo aperaltado de camisa branca desabotoada para se lhe ver os cabelos cinzentos do peito, calça de coutlé azul escuro e o velho blusão de pele castanho coçado. Lá vai ele, rua abaixo a vociferar impropérios do mais vernáculo dirigidos na aparência contra tudo e todos que passam mas, de facto, a nenhum alvo em particular. Lá vai ele, de cabeleira prateada desgrenhada a sorrir no intervalo breve de um palavrão soft ("os caras de cu estão a olhar, nunca viram?!! Sou igual a vocês, caras de cú!") indiferente á chuva que cai de forma impiedosa sobre todos mas não se importa.
Até entrar no único café aberto (repleto de senhoras e meninos presos pela mão vagamente assustados a verem a cortina de chuva intensa através da vidraça da montra) do largo atravancado de carros a apitarcom os limpa pára-brisas em frenético movimento, o Senhor Paulo do alto dos seus quase 63 anos, entra triunfalmente no café com o cumprimento usual, "boa noite, meus queridos mortais!" e põe quase toda agente de semblante carregado enquanto outros, poucos, lhe respondem com um sorriso e uns, mas afoitos, lhe respondem "os que vão morrer como tu também te desejam boa noite". O empregado, de cara de bebé, sorridente traz uma imperial que coloca à frente do Paulo ocupado na tentativa de acender um cigarro molhado que traz pendurado no canto da boca. Alguém lhe oferece um marlboro, ele agradece mas recusa, "prefiro um Camel molhadinho a essa coisa sem paladar" diz ao mesmo tempo que dá um gole na cerveja e solta um "Ah!". De súbito, o Paulo lá consegue acender o cigarro e logo de seguida ouve-se uma salva de palmas, vinda de uma mesa ocupada por três convivas deliciados a juntar copos de canecas no canto junto á parede. O Paulo , ergue o copo e agradece-lhes visivelmente satisfeito "este que vai morrer vos saúda!".
Saio do café com vontade de voltar a entrar, pagar um copo ao Paulo e passar com ele uma hora na conversa. Mas não acho que deva de o fazer para já. Mas adivinho o que vai na alma do Paulo.Para mais, o olhar esmagado de solidão, sem tristeza à vista, que ele mostra sem disfarce nem vergonha fez-me pensar na grandeza dos seus modos desprendidos de medo.
O Paulo vive em estado de ousadia permanente na cidade branca, bela como diz é certo, mas quase morta pelos crimes diários contra ela, pelo ostracismo a que é votada.
Dias depois, o Paulo salta-me ao caminho e atira-me um desafio irrecusável, "paga-me um copo!".Sentados a uma mesinha do british bar junto à montra, Paulo confidencia-me, "Já ninguém se indigna. A rua onde nasci (em Alcântara) está irreconhecível, diz em tom resignado mas não convencido. "As pessoas querem lá saber da felicidade de Lisboa, querem é continuar a esbanjar, esbanjar , esbanjar dinheiro para ver se encontram, a felicidade delas, mas não encontram a felicidade só a ilusão da mesma.
Na brisa fria da tarde de final de Novembro lá vai ele, todo aperaltado de camisa branca desabotoada para se lhe ver os cabelos cinzentos do peito, calça de coutlé azul escuro e o velho blusão de pele castanho coçado. Lá vai ele, rua abaixo a vociferar impropérios do mais vernáculo dirigidos na aparência contra tudo e todos que passam mas, de facto, a nenhum alvo em particular. Lá vai ele, de cabeleira prateada desgrenhada a sorrir no intervalo breve de um palavrão soft ("os caras de cu estão a olhar, nunca viram?!! Sou igual a vocês, caras de cú!") indiferente á chuva que cai de forma impiedosa sobre todos mas não se importa.
Até entrar no único café aberto (repleto de senhoras e meninos presos pela mão vagamente assustados a verem a cortina de chuva intensa através da vidraça da montra) do largo atravancado de carros a apitarcom os limpa pára-brisas em frenético movimento, o Senhor Paulo do alto dos seus quase 63 anos, entra triunfalmente no café com o cumprimento usual, "boa noite, meus queridos mortais!" e põe quase toda agente de semblante carregado enquanto outros, poucos, lhe respondem com um sorriso e uns, mas afoitos, lhe respondem "os que vão morrer como tu também te desejam boa noite". O empregado, de cara de bebé, sorridente traz uma imperial que coloca à frente do Paulo ocupado na tentativa de acender um cigarro molhado que traz pendurado no canto da boca. Alguém lhe oferece um marlboro, ele agradece mas recusa, "prefiro um Camel molhadinho a essa coisa sem paladar" diz ao mesmo tempo que dá um gole na cerveja e solta um "Ah!". De súbito, o Paulo lá consegue acender o cigarro e logo de seguida ouve-se uma salva de palmas, vinda de uma mesa ocupada por três convivas deliciados a juntar copos de canecas no canto junto á parede. O Paulo , ergue o copo e agradece-lhes visivelmente satisfeito "este que vai morrer vos saúda!".
Saio do café com vontade de voltar a entrar, pagar um copo ao Paulo e passar com ele uma hora na conversa. Mas não acho que deva de o fazer para já. Mas adivinho o que vai na alma do Paulo.Para mais, o olhar esmagado de solidão, sem tristeza à vista, que ele mostra sem disfarce nem vergonha fez-me pensar na grandeza dos seus modos desprendidos de medo.
O Paulo vive em estado de ousadia permanente na cidade branca, bela como diz é certo, mas quase morta pelos crimes diários contra ela, pelo ostracismo a que é votada.
Dias depois, o Paulo salta-me ao caminho e atira-me um desafio irrecusável, "paga-me um copo!".Sentados a uma mesinha do british bar junto à montra, Paulo confidencia-me, "Já ninguém se indigna. A rua onde nasci (em Alcântara) está irreconhecível, diz em tom resignado mas não convencido. "As pessoas querem lá saber da felicidade de Lisboa, querem é continuar a esbanjar, esbanjar , esbanjar dinheiro para ver se encontram, a felicidade delas, mas não encontram a felicidade só a ilusão da mesma.
Nunca vão sentir o mesmo amor que sinto por Lisboa, nunca".
À saída, dou por mim a fixar o ar compenetrado do Paulo a olhar deliciado a chuva que caía forte e feio e na paisagem da praça repleta de automobilistas ansiosos a apitar. Chovia, chovia e o Paulo observava como se estivesse a ouvir uma dissertação filosófica interessante. O olhar de Paulo era o de um perturbado deslumbrado. Provavelmente, não tanto pela chuva mas mais pelo poder que ela tinha no momento de tudo perturbar num ápice.
Foi assim que vi pela última vez o Paulo, o Senhor 63 anos que um dia vindo do jornal Século deu em casa com o corpo da mulher caído de bruços na cozinha e nessa noite se pôs á janela a cantar "Ir e vir e ir, ao mar"do grupo Vozes na Luta. Para espanto do vizinhos , do médico legista, dos agentes da psp, dos bombeiros e do bairro inteiro.
Onde quer que estejas Paulo, fica bem!
Lisboa, Jardim do Principe Real, Setembro 2006
À saída, dou por mim a fixar o ar compenetrado do Paulo a olhar deliciado a chuva que caía forte e feio e na paisagem da praça repleta de automobilistas ansiosos a apitar. Chovia, chovia e o Paulo observava como se estivesse a ouvir uma dissertação filosófica interessante. O olhar de Paulo era o de um perturbado deslumbrado. Provavelmente, não tanto pela chuva mas mais pelo poder que ela tinha no momento de tudo perturbar num ápice.
Foi assim que vi pela última vez o Paulo, o Senhor 63 anos que um dia vindo do jornal Século deu em casa com o corpo da mulher caído de bruços na cozinha e nessa noite se pôs á janela a cantar "Ir e vir e ir, ao mar"do grupo Vozes na Luta. Para espanto do vizinhos , do médico legista, dos agentes da psp, dos bombeiros e do bairro inteiro.
Onde quer que estejas Paulo, fica bem!
Lisboa, Jardim do Principe Real, Setembro 2006
quinta-feira, dezembro 07, 2006
desaire imperial
The Roman Empire is falling. That, in a phrase, is what the Baker report says. The legions cannot impose their rule on Mesopotamia.
Just as Crassus lost his legions' banners in the deserts of Syria-Iraq, so has George W Bush. There is no Mark Antony to retrieve the honour of the empire. The policy "is not working". "Collapse" and "catastrophe" - words heard in the Roman senate many a time - were embedded in the text of the Baker report. Et tu, James?
Just as Crassus lost his legions' banners in the deserts of Syria-Iraq, so has George W Bush. There is no Mark Antony to retrieve the honour of the empire. The policy "is not working". "Collapse" and "catastrophe" - words heard in the Roman senate many a time - were embedded in the text of the Baker report. Et tu, James?
This is also the language of the Arab world, always waiting for the collapse of empire, for the destruction of the safe Western world which has provided it with money, weapons, political support. First, the Arabs trusted the British Empire and Winston Churchill, and then they trusted the American Empire and Franklin Delano Roosevelt and the Truman and Eisenhower administrations and all the other men who would give guns to the Israelis and billions to the Arabs - Nixon, Carter, Clinton, Bush...
Robert Fisk, The Independent -7 Dec. 2006
(artigo integral em: http://news.independent.co.uk/world/fisk/article2054595.ece)
terça-feira, dezembro 05, 2006
check-up
No Jornal de Notícias de ontem, Paulo Morais, incómodo como sempre, punha uma vez mais o dedo na ferida do mal (ancestral) deste país:
"Vivemos tempos muito semelhantes aos que Portugal era antes do 25 de Abril, com corporações dominantes de todo o sistema. (...) O espírito de Salazar mantém-se e todo um conjunto de salazaretes de segunda que andam por aí a dominar o sistema fazem com que estejamos quase irremediavelmente afastados do desenvolvimento.... ."
Explicar aquilo que todos já sabem há muito mas andam a fazer de conta que não. No fundo, limitam-se a cumprir o "regulamento" do costume.
segunda-feira, dezembro 04, 2006
sessão especial
O grande mérito da (única) homenagem pública a Beatriz Costa, anos antes da sua morte, talvez tenha sido apenas isto: uma livraria/galeria de renome (a Barata) resolveu juntar na grande sala do Londres (antes da remodelação, anos depois, ditada pela crise), uma pequena multidão de cerca 200 pessoas para ovacionar a popular e talentosa actriz e delirar, pela enésima vez, com o adocicado, "A Canção de Lisboa"(obrigado Luís de Pina!). A somar ao prazer de apreciar também ao vivo o (bom) humor de Beatriz Costa, foi um memorável fim de tarde de verão, de Junho de 1992.
(Foto de Fernando Correia. Ladeando Beatriz Costa, o casal Barata, Zélia e António).
domingo, dezembro 03, 2006
fracasso e fraude
Ao grande fiasco iraquiano vem, célere, juntar-se um outro -o do Afeganistão. É escusado fazer uso da fidelidade canina para mascarar a realidade do quotidiano afegão, é escusado. Basta recordar as palavras "proféticas" do fantasioso secretário de Estado da Defesa estadounidense, Donald Rumsfeld, em Agosto de 2002, proclamando uma nova era para o povo afegão: "a breathtaking accomplishment" e, delirando, "a successful model of what could happen to Iraq". Quatro anos depois da invasão e ocupação do Afeganistão, os EUA, apoiados pela Nato, ganharam a batalha por Cabul mas perderam a guerra. Nem é preciso procurar muito na imprensa internacional para perceber que a aventura imperial no Afeganistão vai ter o fim que outras tiveram no passado. Além de que, a tão propagandeada "democratização pacífica" e "reconstrução afegã" salda-se à data num surpreendente fracasso, uma enorme fraude, que já vem provocando danos na "coligação".
Os biliões de dólares escoados por dezenas de países dadores e destinados à eufemística "reconstrução" e "ajuda internacional" são, segundo fontes oficiais, desviados na sua maioria pela "corrupção afegã". Mas na verdade o que acontece é que muitos desses fundos tem servido , segundo fontes de Ong's e da ONU, para construir embaixadas, universidades (americanas!), autoestradas (a preços "singelos" de 250.000 dólares o km ou, na pior da hipóteses, a 700.000 dolares cada km se o trabalho cair "nas mãos" do Louis Berger Group, empresa conhecida por ter recebido 665 milhões de dólares para construir... escolas). Um lógica simplex, cínicamente falando.
Recentemente, os EUA impuseram ao governo afegão a obrigatoridade de pagamento de taxa de 20 dolares mensais a todos os automobilistas afegãos. Com essa medida, os norte-americanos pensam reunir mais 30 milhões de doláres que funcionarão como "contributo dos Estados Unidos para a assistência social"(!).
E não deixa de ser sintomático que Cabul continue a ser uma cidade destruída, (destruída também pela mentira) repleta de tendas onde se albergam familias inteiras na maioria desempregados. Cabul, transformada na cidade das mulheres perdidas na prostituição e das crianças raptadas e escravizadas ou assassinadas por traficantes de orgãos.
O Afeganistão quatro anos depois da ilusória vitória é cada vez mais um campo de batalha, como o comprovam a subida em flecha dos ataques da resistência, cada vez mais organizada, dos talibãs e de outros que selhes juntaram.
Os biliões de dólares escoados por dezenas de países dadores e destinados à eufemística "reconstrução" e "ajuda internacional" são, segundo fontes oficiais, desviados na sua maioria pela "corrupção afegã". Mas na verdade o que acontece é que muitos desses fundos tem servido , segundo fontes de Ong's e da ONU, para construir embaixadas, universidades (americanas!), autoestradas (a preços "singelos" de 250.000 dólares o km ou, na pior da hipóteses, a 700.000 dolares cada km se o trabalho cair "nas mãos" do Louis Berger Group, empresa conhecida por ter recebido 665 milhões de dólares para construir... escolas). Um lógica simplex, cínicamente falando.
Recentemente, os EUA impuseram ao governo afegão a obrigatoridade de pagamento de taxa de 20 dolares mensais a todos os automobilistas afegãos. Com essa medida, os norte-americanos pensam reunir mais 30 milhões de doláres que funcionarão como "contributo dos Estados Unidos para a assistência social"(!).
E não deixa de ser sintomático que Cabul continue a ser uma cidade destruída, (destruída também pela mentira) repleta de tendas onde se albergam familias inteiras na maioria desempregados. Cabul, transformada na cidade das mulheres perdidas na prostituição e das crianças raptadas e escravizadas ou assassinadas por traficantes de orgãos.
O Afeganistão quatro anos depois da ilusória vitória é cada vez mais um campo de batalha, como o comprovam a subida em flecha dos ataques da resistência, cada vez mais organizada, dos talibãs e de outros que selhes juntaram.
Com o cultivo do ópio a chegar aos 59% pode dizer-se que os EUA ganharam o Afeganistão. O problema é saber "até quando?".
sábado, dezembro 02, 2006
sexta-feira, dezembro 01, 2006
o poder, todos os poderes
Há dias, o canal Hollywood reservou-me outra agradável surpresa: a exibição de Fahrenheit 451 (Grau de Destruição), de François Truffaut. Trata-se, como está bem de ver, de uma adaptação do célebre romance homónimo de Ray Bradbury em que o tema da sociedade totalitária e da escravização da condição humana -numa clara alusão ao nazismo- é abordado de forma notável.
Visto hoje, Fahrenheit 451 (a temperatura a que arde o papel...) talvez incomode um pouco mais pela sua explícita denúncia do poder, de todos os poderes que , regra geral, controlam, vigiam e oprimem.
Mais do que um apelo (radical) à liberdade, a todas as liberdades o filme, tal como no romance, faz o elogio da resistência a favor da causa da dignidade do homem, de todos os homens, contra todas as formas de opressão, pela defesa da criação literária e artística, contra a manipulação de consciências e a conspiração do poder ideológico dominante, a favor da preservação da memória civilizacional. Em suma, tomar a defesa da liberdade como um bem essencial.
Nos tempos que correm, um filme/livro como Fahrenheit 451 será tão mais esclarecedor quanto nós assim o desejarmos. Para nos mantermos em estado de alerta, evidentemente.
Visto hoje, Fahrenheit 451 (a temperatura a que arde o papel...) talvez incomode um pouco mais pela sua explícita denúncia do poder, de todos os poderes que , regra geral, controlam, vigiam e oprimem.
Mais do que um apelo (radical) à liberdade, a todas as liberdades o filme, tal como no romance, faz o elogio da resistência a favor da causa da dignidade do homem, de todos os homens, contra todas as formas de opressão, pela defesa da criação literária e artística, contra a manipulação de consciências e a conspiração do poder ideológico dominante, a favor da preservação da memória civilizacional. Em suma, tomar a defesa da liberdade como um bem essencial.
Nos tempos que correm, um filme/livro como Fahrenheit 451 será tão mais esclarecedor quanto nós assim o desejarmos. Para nos mantermos em estado de alerta, evidentemente.
imagem de um festróia
(Foto: Fernando Correia/DN)
Basta olhar a expressão, no mínimo interessante(!), de Mickaela Kaiser, produtora austríaca de Die Papierene Brucke ( A Ponte de Papel) para se perceber o burburinho que esta imagem gerou em algum do staff e entre os convidados do III Festival Internacional de Cinema de Tróia (1987). Como se vê, a atenção nas explicações de Mikaela foi agudíssima.
Basta olhar a expressão, no mínimo interessante(!), de Mickaela Kaiser, produtora austríaca de Die Papierene Brucke ( A Ponte de Papel) para se perceber o burburinho que esta imagem gerou em algum do staff e entre os convidados do III Festival Internacional de Cinema de Tróia (1987). Como se vê, a atenção nas explicações de Mikaela foi agudíssima.
quinta-feira, novembro 30, 2006
o "espírito" de langlois
Na programação da Cinemateca Portuguesa -sempre meritória, como vem sendo hábito- que se anuncia para o último mês do ano, figura a projecção, em sessões contínuas diárias (com entrada livre), de Le Fantôme d'Henri Langlois,interessantissíma longa-metragem documental assinada por Jacques Richard e produzida em 2004, sobre a vida e obra do pioneiro dos arquivos das chamadas imagens em movimento.
Sabendo, como se sabe, que a Henri Langlois (1914-1977) se ficou dever não apenas a criação, em 1936, da Cinémathèque Française, mas todo um trabalho arduo de enorme rigor realizado com entusiasmo durante décadas a fio, que não se circunscreveu aos domínios da aquisição, preservação e restauração mas que superou as expectativas mesmo na vertente da divulgação como o comprovam as dezenas de intervenções públicas em defesa, designadamente, da "nouvelle vague" e do cinema de autor na generalidade, seria imperdoável deixar passar em claro este curioso filme que reune material de arquivo e depoimentos de consagrados realizadores como Godard, Nick Ray, Hitchcock, Franju ou Raoul Walsh.
Pena é que o documentário inglês datado de 1970 ,"Henri Langlois", da dupla Roberto Guerra e Elia Hershon, rodado com Langlois vivo não tenha vindo complementar o do realizador gaulês.
segunda-feira, novembro 27, 2006
pequenez...periférica
No ano em que se assinala os quatrocentos anos do nascimento do pintor e gravador Rembrandt , uma pequena distribuidora francesa de cinema alternativo de nome E.D. Distribution -celebrizada em França pela difusão da obra dos irmãos Quay e de Guy Maddin, entre outros- repõe por estes dias numa vintena de salas gaulesas, uma pequena pérola do cinema holandês completamente desconhecido entre nós: Rembrandt fécit 1669, de Jos Stelling. Porque se trata, desde logo, de um excelente e surpreendente filme tanto em termos artísticos como de concepção, espanta-me a contínua ausência de "imaginação" da distribuição cinematográfica portuguesa na forma como se revela (persistentemente!) incapaz em alargar, de uma vez por todas, os seus horizontes.
Com os apoios comunitários (que subsistem) para a promoção e difusão das cinematografias europeias não há razões que justifiquem a estúpida teimosia em ausentar dos ecrãs nacionais a produção de dezenas de filmes húngaros, belgas, holandeses, polacos, dinamarqueses, suecos, finlandeses, romenos... etc, etc. Há algo de suicidário nesta visão redutora do mundo e daquilo que ele tem para nos oferecer. Há e é muito, muitíssimo, para a nossa cada vez mais comprovada pequenez.
domingo, novembro 26, 2006
cesariny (1923-2006)
Vamos ver o povo
Que lindo é
Vamos ver o povo.
Dá cá o pé.
Vamos ver o povo.
Hop-lá!
Vamos ver o povo.
Já está.
Mário Cesariny
in nobilíssima visão, Assírio & Alvim , Outubro 1991
sábado, novembro 25, 2006
"profecias" de ernesto sampaio
já desaparecidos
O Ernesto Sampaio (que conheci num dia longínquo de 1976...), jornalista, encenador teatral, foi sobretudo um dos grandes teóricos do surrealismo. Homem de cultura vastíssima o Ernesto foi um pensador exímio com uma capacidade de análise invulgar. O texto (extractos) que abaixo se segue , escrito no alvorecer do cavaquismo, põe a nú com grande lucidez o "futuro" que aí vinha ...e que estamos vivendo exactamente como ele o previu.
Um grande abraço, Ernesto!
Uma sociedade sem conflitos só pode ser uma sociedade totalitária, e já não restam dúvidas de que a utopia capitalista abre caminho a uma implacável ditadura: a do mercado. O que está em jogo é o fim de um período do capitalismo ligado de certo modo à emergência de uma sociedade pluralista. A gigantesca redistribuição dos mercados mundiais que hoje se entregam os colossos do capital financeiro, a concentração em poucas mãos de qauntidades de dinheiro astronómicas, significam o dobre de finados do pluralismo sob todas as suas formas.
Entretanto , instituições e aparelhos ideológicos (privados ou do Estado) funcionam essencialmente como máquinas de embrutecer, o ensino é medíocre e não tem qualquer finalidade humanista, a cretinice é a norma dos programas de rádio e televisão, a imprensa pratica sistemaáticamente o elctrochoque afectivo (dramatizaçãoi de acontecimentos ínfimos para ocultar os que são realmente importantes), o obscurantismo, sob todas as suas formas, está na ordem do dia, os conceitos mais vis e reaccionários beneficiam de uma publicidade espaventosa, os poderes montam disposistivos sofisticados para privar os cidadãos de qualquer hipótese de reflexão e acção.
Impotente perante este sistema (a que se submete cegamente) , o cidadão nunca se interroga sobre o que deve fazer (tem, aliás, a sensação de que não pode fazer nada), limitando-se a pensar co inquietação no que lhe virá a acontecer.
Viver atolado na merda até ao pescoço não o preocupa demasiado, quando outras ameaças mais concretas se perfilam no horizonte, como perder o emprego, por exemplo. Sem nenhuma influência influência no destino da colectividade nem no seu destino próprio, o individuo vê-se reduzido a esperar que a sorte lhe sorria, isto é, que não lhe batam muito... .
Ernesto Sampaio
in Diário de Lisboa 19 Junho 1987
in Diário de Lisboa 19 Junho 1987
quarta-feira, novembro 22, 2006
d.maria II, teatro aberto
foto: Teatro D. Maria
No "Público" de ontem (3ªfeira), Eduardo Prado Coelho faz o elogio da programação do Teatro Nacional D. Maria. Por uma questão, diz o cronista, "de honestidade intelectual a que sou extremamente sensível". Seguem-se elogios às "iniciativas que estão em curso" que considera serem "bastante positivas"... .
Ainda que os seus gostos não permitam encaixar tudo aquilo que foi enunciado pela director Carlos Fragateiro, tão contestado na altura da nomeação, o certo é que EPC considera existirem iniciativas de "inegável valor" que denotam "uma dimensão cosmopolita" muito "interessante e benéfica". Os elogios estendem-se à Livraria (gerida pelo teatro) e à criação da esplanada voltada para a Praça do Rossio.
O "deslumbramento" de EPC é sério, não tenhamos dúvidas, e também sensível. Depois do "coro de protestos" chega a hora da bonança. Mesmo quando elogia o trabalho desenvolvido pelo anterior director, António Lagarto, como "exemplar" - e crítica o modo como este foi afastado, "sem razões claras"- EPC não deixa de ser coerente porque tem a noção do valor dos dois protagonistas, Lagarto e Fragateiro. Mas, convenhamos, com uma ligeira diferença de "estilos": um fechou o espaço onde se mantinha a funcionar uma livraria (presumo que da Assírio & Alvim), o outro (re)abriu-a e deu-lhe atributos de serviço público.
Não será coisa muito relevante, pois não, nem de todo exemplar mas , em rigor, faz (toda) a diferença na gestão criativa dos espaços e na ideia de gerir um teatro como o nacional. Uma diferença que dá prazer a quem lá vai e se deixa "envolver", como de resto acontece com EPC. No fundo, um teatro pode e deve ser um espaço culturalmente mais aberto.
No "Público" de ontem (3ªfeira), Eduardo Prado Coelho faz o elogio da programação do Teatro Nacional D. Maria. Por uma questão, diz o cronista, "de honestidade intelectual a que sou extremamente sensível". Seguem-se elogios às "iniciativas que estão em curso" que considera serem "bastante positivas"... .
Ainda que os seus gostos não permitam encaixar tudo aquilo que foi enunciado pela director Carlos Fragateiro, tão contestado na altura da nomeação, o certo é que EPC considera existirem iniciativas de "inegável valor" que denotam "uma dimensão cosmopolita" muito "interessante e benéfica". Os elogios estendem-se à Livraria (gerida pelo teatro) e à criação da esplanada voltada para a Praça do Rossio.
O "deslumbramento" de EPC é sério, não tenhamos dúvidas, e também sensível. Depois do "coro de protestos" chega a hora da bonança. Mesmo quando elogia o trabalho desenvolvido pelo anterior director, António Lagarto, como "exemplar" - e crítica o modo como este foi afastado, "sem razões claras"- EPC não deixa de ser coerente porque tem a noção do valor dos dois protagonistas, Lagarto e Fragateiro. Mas, convenhamos, com uma ligeira diferença de "estilos": um fechou o espaço onde se mantinha a funcionar uma livraria (presumo que da Assírio & Alvim), o outro (re)abriu-a e deu-lhe atributos de serviço público.
Não será coisa muito relevante, pois não, nem de todo exemplar mas , em rigor, faz (toda) a diferença na gestão criativa dos espaços e na ideia de gerir um teatro como o nacional. Uma diferença que dá prazer a quem lá vai e se deixa "envolver", como de resto acontece com EPC. No fundo, um teatro pode e deve ser um espaço culturalmente mais aberto.
terça-feira, novembro 21, 2006
"heresias" buñuelianas
El joven monje: Hay algo que me turba.
El inquisidor: Os escucho... .
El joven monje: Me pregunto si quemar a los herejes no es ir contra la voluntad del Espíritu Santo.
El inquisidor (algo sorprendido): Pero si es la justicia de los hombres quien les castiga.!Es el brazo secular! Los herejes no son castigados por ser herejes, sino por las sediciones e los atentados que cometen contra el orden público. ?Comprendéis lo que quiero decir?
El joven monje: Sí. Aunque , siendo así, aquellos que han visto quemar a sus hermanos quemarán a su vez los demás, y así sucesivamente. (en voz baja). Uno tras otro, todos estarán seguros de poseer la verdad...Y entonces, ?para qué habrán servido todos esos millones de muertos?
extracto diálogos, La Voie Lactée (1969), de Luís Buñuel
El inquisidor: Os escucho... .
El joven monje: Me pregunto si quemar a los herejes no es ir contra la voluntad del Espíritu Santo.
El inquisidor (algo sorprendido): Pero si es la justicia de los hombres quien les castiga.!Es el brazo secular! Los herejes no son castigados por ser herejes, sino por las sediciones e los atentados que cometen contra el orden público. ?Comprendéis lo que quiero decir?
El joven monje: Sí. Aunque , siendo así, aquellos que han visto quemar a sus hermanos quemarán a su vez los demás, y así sucesivamente. (en voz baja). Uno tras otro, todos estarán seguros de poseer la verdad...Y entonces, ?para qué habrán servido todos esos millones de muertos?
extracto diálogos, La Voie Lactée (1969), de Luís Buñuel
sexta-feira, novembro 17, 2006
the wonderful wizard of oz
The Wizard of Oz foi, com toda a certeza, um dos filmes mais vistos durante a minha infância. A minha mãe era não apenas uma ferrenha da Judy Garland mas também totalmente fanática do filme, que vimos juntos pelo menos uma cinco vezes. Lembro-me de sairmos do cinema de mão dada a trautear, We're off to see the Wizard / The Wonderful Wizard of Oz / We hear he is a whiz of a Wiz / If ever a Wiz there was. / If ever, oh ever a Wiz there was / The Wizard of Oz is one because / Because, because, because, because, because / Because of the wonderful things he does / We're off to see the Wizard / The Wonderful Wizard of Oz!. Lembro-me de uma vez ao regressarmos a casa de carro eléctrico eu na minha inocência de menino de sete anos ter dito á minha mãe que o mundo de Oz era um mundo imaginário em que era bom ser criança e ser feliz tinha(!) -achava eu- de se inventar (foi a palavra...) a felicidade para o mundo a sério. Lembro-me de a minha mãe sorrir levemente e fazer-me uma festa na cabeça, depois o seu olhar desviou-se para a janela do carro. A vida a correr lá fora, num domingo qualquer do ano de 1964.
quinta-feira, novembro 16, 2006
lembrar visconti (3)
(Outro exemplo: Visconti)
Trabalhava como um doido, ocultando o seu sofrimento. A doença humilha, agora era de uma cadeira de rodas que dirigia os actores, alterava a decoração, discutia as luzes. Trabalha para não morrer, dizem os amigos. Horas e horas para escolher o tom de um cortinado, a maneira de erguer um véu à altura da boca, a cor das maçãs no linho baço da toalha, com esse amor à realidade que só conhece quem a sabe tão fugidia. Abandonada a câmara, era ainda no trabalho que pensava ao ler duas ou três páginas de Proust, Stendhal. Apagara a luz, depois de ter ordenado que retirassem as floress do quarto, o aroma das gardénias começava a enjoá-lo. Mas o sono demorava. Tinha a cabeça cheia de imagens, sobretudo de sua mãe, surgindo no meio de uns versos de Auden, que fizera seus nos últimos tempos. When you see a fair form chase it / And if possible embrace it / Be it a girl or a boy... Adormecia tarde e era o primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem. Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto de Tulio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos francamente iluminadas. Porque é nas mãos... Não, não, as mãos são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo no amor; mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo que principiava. Ali estava ela, tomamndo conta de si. Via-a crescer a cada instante, essa cadela. de súbito tornara-se real, os dentes afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano
Eugénio de Andrade
in O Bosque Sagrado, Edição Gota de Água, Maio 1986
Trabalhava como um doido, ocultando o seu sofrimento. A doença humilha, agora era de uma cadeira de rodas que dirigia os actores, alterava a decoração, discutia as luzes. Trabalha para não morrer, dizem os amigos. Horas e horas para escolher o tom de um cortinado, a maneira de erguer um véu à altura da boca, a cor das maçãs no linho baço da toalha, com esse amor à realidade que só conhece quem a sabe tão fugidia. Abandonada a câmara, era ainda no trabalho que pensava ao ler duas ou três páginas de Proust, Stendhal. Apagara a luz, depois de ter ordenado que retirassem as floress do quarto, o aroma das gardénias começava a enjoá-lo. Mas o sono demorava. Tinha a cabeça cheia de imagens, sobretudo de sua mãe, surgindo no meio de uns versos de Auden, que fizera seus nos últimos tempos. When you see a fair form chase it / And if possible embrace it / Be it a girl or a boy... Adormecia tarde e era o primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem. Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto de Tulio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos francamente iluminadas. Porque é nas mãos... Não, não, as mãos são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo no amor; mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo que principiava. Ali estava ela, tomamndo conta de si. Via-a crescer a cada instante, essa cadela. de súbito tornara-se real, os dentes afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano
Eugénio de Andrade
in O Bosque Sagrado, Edição Gota de Água, Maio 1986
quarta-feira, novembro 15, 2006
reflexo de redução do mundo real
Depois da antológica cláusula-lei-da-rolha imposta protocolarmente a favor da abstinência a eventuais críticas às políticas ou actos da câmara do Porto eís que surge uma decisão surpreendente do autarca-monarca da cidade invicta: suprimir as subvenções -a partir do próximo ano- aos agentes culturais!
Na sua expressão mais simples, Rui Rio pôs a nú qual a concepção do mundo ( e dos valores) a que pertence. Doutrináriamente falando estamos pois esclarecidos sobre os traços essenciais deste sinistro fenómeno vindo de um poder autárquico democrático.
Mais grave é a complacência do poder político e, pior ainda, da dita "inteligenzia" deste país.
Na sua expressão mais simples, Rui Rio pôs a nú qual a concepção do mundo ( e dos valores) a que pertence. Doutrináriamente falando estamos pois esclarecidos sobre os traços essenciais deste sinistro fenómeno vindo de um poder autárquico democrático.
Mais grave é a complacência do poder político e, pior ainda, da dita "inteligenzia" deste país.
segunda-feira, novembro 13, 2006
palavras de josé afonso
Utopia Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
E teu a ti o deves
lança o teu
desafio
Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?
in Como Se Fora seu Filho, edição Orfeu, 1983, LP- 33 r.p.m.
sábado, novembro 11, 2006
lembrar visconti (2)
Morte A Venezia (1970)
Numa iniciativa do ABC Cineclube de Lisboa decorre até dia 30 deste mês no Auditório João Hogan (Voz do Operário, 5ªfeiras e sábados, pelas 17h00), um ciclo de homenagem a Luchino Visconti, no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento.
Trata-se, antes de mais de um louvável propósito (o único neste "deserto" cultural em que até a Cinemateca Portuguesa faltou "à chamada"...) de desocultação de uma parte significativa (dez longas-metragens) da obra do grande mestre italiano, com destaque para os filmes (de grande densidade e poder de análise sociológica) de início de carreira -Obsessione, La Terra Treme, Belíssima e Senso- que representam a grande afirmação do que viria a ser (a partir de Il Gattopardo...) a generalidade da restante obra de Visconti.
Obra marcada -nunca é demais lembrá-lo- por uma capacidade invulgar de abordagem psicológica e sociológica da classe burguesa dominante num mundo atravessado por transições e mutações profundas. Quer na abordagem estética quer no domínio fílmico, Visconti evidenciou sempre enormes capacidades também na composição de universos ideológicos e na criação rigorosa de ambiências das épocas retratadas: neo-romantismo em Ludwig, impressionismo em Morte A Venezia e expressionismo alemão em La Caduta degli Dei / The Damned.
Numa iniciativa do ABC Cineclube de Lisboa decorre até dia 30 deste mês no Auditório João Hogan (Voz do Operário, 5ªfeiras e sábados, pelas 17h00), um ciclo de homenagem a Luchino Visconti, no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento.
Trata-se, antes de mais de um louvável propósito (o único neste "deserto" cultural em que até a Cinemateca Portuguesa faltou "à chamada"...) de desocultação de uma parte significativa (dez longas-metragens) da obra do grande mestre italiano, com destaque para os filmes (de grande densidade e poder de análise sociológica) de início de carreira -Obsessione, La Terra Treme, Belíssima e Senso- que representam a grande afirmação do que viria a ser (a partir de Il Gattopardo...) a generalidade da restante obra de Visconti.
Obra marcada -nunca é demais lembrá-lo- por uma capacidade invulgar de abordagem psicológica e sociológica da classe burguesa dominante num mundo atravessado por transições e mutações profundas. Quer na abordagem estética quer no domínio fílmico, Visconti evidenciou sempre enormes capacidades também na composição de universos ideológicos e na criação rigorosa de ambiências das épocas retratadas: neo-romantismo em Ludwig, impressionismo em Morte A Venezia e expressionismo alemão em La Caduta degli Dei / The Damned.
sexta-feira, novembro 10, 2006
casualties of war
Como está à vista, a máquina de propaganda dos neo-conservadores norte-americanos foi impotente para evitar a devastação eleitoral de que foi alvo nesta semana: os democratas (e independentes) conquistaram a maioria no Congresso e no Senado (alcançando a vitória á ultima hora no Estado de Virginia, reduto forte do partido do "elefante"), alterando assim a correlação de forças que permitiu durante décadas manter os republicanos no comando do poder "legislativo".
A primeira causa-efeito foi o afastamento (previsivel desde o verão, aliás) do controverso e conflituoso secretário da defesa, Donald Rumsfeld , um dos mais líricos arquitectos da conquista do Iraque em clima hollywoodesco de festa e foguetes... mas que a realidade transformou depressa demais num enorme fiasco gerador de violência e caos extremos. O que teve por consequência a falência completa do fantasioso plano de reconstrução do Iraque, a desorientação no seio do exército dos Estados Unidos (que forçou generais à "rebelião"verbalista contra o Pentágono), a crescente oposição interna contra a guerra e a perigosa situação de desmembramento da nação iraquiana com os efeitos devastadores que se imagina para a região do Médio Oriente.
Se estas são algumas das causas que tornaram decisiva a vitória democrata não são, no entanto, de molde a criar ilusões sobre aquilo que vai mudar, de facto.
Para já, Bush -que já aprendeu a ver a guerra por outra perspectiva...- fica com o poder relativamente limitado às vontades da oposição e, enquanto aguarda pelo novo dossiê da redefinição estratégica da guerra no Iraque bem pode (re) negociar com o partido democrata alguma da "legislação" totalitária e digna de um estado fascista que impôs à América sob o disfarce do combate ao terrorismo.
Veremos, também , como se comportam os velhos novos herdeiros de Lincoln, designadamente em relação ao culto do Mal instalado em Guantánamo, ao obscuro Patriot Act e outros exemplos da perversão dos "neo-cons" que tanto envergonharam o mundo nestes últimos anos.
A primeira causa-efeito foi o afastamento (previsivel desde o verão, aliás) do controverso e conflituoso secretário da defesa, Donald Rumsfeld , um dos mais líricos arquitectos da conquista do Iraque em clima hollywoodesco de festa e foguetes... mas que a realidade transformou depressa demais num enorme fiasco gerador de violência e caos extremos. O que teve por consequência a falência completa do fantasioso plano de reconstrução do Iraque, a desorientação no seio do exército dos Estados Unidos (que forçou generais à "rebelião"verbalista contra o Pentágono), a crescente oposição interna contra a guerra e a perigosa situação de desmembramento da nação iraquiana com os efeitos devastadores que se imagina para a região do Médio Oriente.
Se estas são algumas das causas que tornaram decisiva a vitória democrata não são, no entanto, de molde a criar ilusões sobre aquilo que vai mudar, de facto.
Para já, Bush -que já aprendeu a ver a guerra por outra perspectiva...- fica com o poder relativamente limitado às vontades da oposição e, enquanto aguarda pelo novo dossiê da redefinição estratégica da guerra no Iraque bem pode (re) negociar com o partido democrata alguma da "legislação" totalitária e digna de um estado fascista que impôs à América sob o disfarce do combate ao terrorismo.
Veremos, também , como se comportam os velhos novos herdeiros de Lincoln, designadamente em relação ao culto do Mal instalado em Guantánamo, ao obscuro Patriot Act e outros exemplos da perversão dos "neo-cons" que tanto envergonharam o mundo nestes últimos anos.
quarta-feira, novembro 08, 2006
"a sexta melhor pintora"
Ao remexer ontem em escritos de minha mãe redescubro um interessante folheto sobre a pintora Vieira da Silva, (que quase caiu no esquecimento, como é prática entre nós...) que foi, como se sabe, uma grande personalidade da cultura portuguesa de reconhecido e enorme valor artístico. Em 1966, a revista francesa Connaissance anunciou o nome de Vieira da Silva como uma das seis melhores pintoras, segundo opinião de proprietários das galerias de arte mais importantes em todo o mundo.
Esse folheto, em formato A5, que me veio parar ás mãos anuncia modestamente a realização de uma sessão de homenagem (creio que a única no imediato ...) após a sua morte e promovida pela livraria Barata, com a minha colaboração.
Lembro-me de a sala da galeria estar repleta de gente num sábado à tarde e da emoção disparar às primeiras imagens de Ma Femme Chamada Bicho, o singular documentário do meu amigo José Álvaro de Morais, também já desaparecido. Lembro-e das palavras do David Mourão Ferreira nos fazerem compreender o estatuto ímpar do trabalho da Maria Helena Vieira da Silva.
Esse folheto, em formato A5, que me veio parar ás mãos anuncia modestamente a realização de uma sessão de homenagem (creio que a única no imediato ...) após a sua morte e promovida pela livraria Barata, com a minha colaboração.
Lembro-me de a sala da galeria estar repleta de gente num sábado à tarde e da emoção disparar às primeiras imagens de Ma Femme Chamada Bicho, o singular documentário do meu amigo José Álvaro de Morais, também já desaparecido. Lembro-e das palavras do David Mourão Ferreira nos fazerem compreender o estatuto ímpar do trabalho da Maria Helena Vieira da Silva.
segunda-feira, novembro 06, 2006
hipocrisia(s)
A esperada condenação á morte de Saddam Hussein decretada por um tribunal criado e gerido pelos ocupantes norte-americanos traz à memória um, dois, três factos que convém não esquecer: a)- Saddam Hussein foi, desde que tomou o poder num golpe de estado em 1967, um homem que tombou nas graças dos americanos e, só caiu em desgraça porque se recusou a aceitar "partilhar" com os Estados Unidos as enormes riquezas naturais ao contrário do coronel Kadhafi que já não carrega nos ombros o anátema de "terrorista"(!) e até se tornou "bonzinho" e "civilizado"!; b)- Saddam Hussein e o Iraque foram nos anos 80, para o chamado "mundo civilizado", uma espécie de "contrafogo" às ameaças do Irão. Por essa razão (e outras) os Estados Unidos prestaram a Saddam uma ajuda militar sem precedentes, muito expressiva, também para ajudar o Partido Baas Iraquiano a suster a ira xiita; c)- O controverso secretário de estado, Donald Rumsfeld fez, nos anos de 80, uma (que se saiba e registada para a posteriedade:::)incursão pacífica a Bagdade na qualidade de membro da administração Reagan, para mostrar a sua simpatia e apoio ao governo de Saddam Hussein, como se pode observar mum curto video disponível online, desde a desastrosa operação "freedom iraq", que fere de vergonha a consciência dos democratas.
Eram de origem norte-americana e ocidental as armas e munições usadas por Saddam para eliminar os focos de resistência interna; eram de origem norte-americana e ocidental os diversos tipos(!) de gases utilizados no extermínio de populações do curdistão iraquiano como o foram na frente de batalha contra o Irão. Eram norte-americanos e ocidentais os "instrutores" que apoiaram as tropas de Saddam, na contenda contra a Republica Islamica do Irão. Pergunta inocente: não deveriam estar também sentados no banco do réus do Tribunal especial criado pela admnistração Bush todos esses "amigos" de circunstância que tão bem exerceram a sua missão de armar o exército de Saddam? Não mereceriam esses "sponsors" (autores morais!?) eles também a acusação de "crimes contra a humanidade"e a pena de condenação à morte?
Registo, com um sorriso, o facto recente dos britânicos -numa sondagem no The Guardian da passada semana- terem colocado o nome de Bush logo a seguir ao de Bin Laden como os "mais perigosos" à Paz!. Sintomático este "fair play" british!
Eram de origem norte-americana e ocidental as armas e munições usadas por Saddam para eliminar os focos de resistência interna; eram de origem norte-americana e ocidental os diversos tipos(!) de gases utilizados no extermínio de populações do curdistão iraquiano como o foram na frente de batalha contra o Irão. Eram norte-americanos e ocidentais os "instrutores" que apoiaram as tropas de Saddam, na contenda contra a Republica Islamica do Irão. Pergunta inocente: não deveriam estar também sentados no banco do réus do Tribunal especial criado pela admnistração Bush todos esses "amigos" de circunstância que tão bem exerceram a sua missão de armar o exército de Saddam? Não mereceriam esses "sponsors" (autores morais!?) eles também a acusação de "crimes contra a humanidade"e a pena de condenação à morte?
Registo, com um sorriso, o facto recente dos britânicos -numa sondagem no The Guardian da passada semana- terem colocado o nome de Bush logo a seguir ao de Bin Laden como os "mais perigosos" à Paz!. Sintomático este "fair play" british!
domingo, novembro 05, 2006
estratégias do desejo
Quarenta anos depois, Belle de Jour mantém intacta a capacidade de proclamar a plenos pulmões que a paixão deve ser objecto de experimentação até às últimas consequências, - i.e. transgressão e perversidade. Buñuel, que foi sobretudo um irónico surrealista, fez dos espectadores simples voyeurs, dando-lhes a ver o que "dispensavam" e a esconder-lhes o muito que ansiosamente desejavam ver. Catherine Deneuve , numa surpreendente metamorfose chamada Séverine, fez da moral burguesa uma amálgama de ambiguidades. Delirante exercício "poético"sobre o desejo e o seu objecto de sedução.
sexta-feira, novembro 03, 2006
lembrar visconti(1)
Cumpriram-se ontem cem anos sob o nascimento de Luchino Visconti, uma das personalidades mais fascinantes da cultura europeia do século passado. De ascendência aristocrática, Visconti deixou-nos um legado artístico que supera em muito o poder criativo de um homem vulgar, que nunca foi, de facto. Da ópera ao teatro, da literatura ao cinema, Luchino Visconti ousou marcar o seu tempo com um vigor e inteligência impares, mantendo sempre a sua independência de pensamento e enorme dignidade intelectual. De Ossessione, passando por Rocco e i Suoi Fratelli Senso até Morte A Venezia, Gruppo i Famiglia in un interno e L'Innocente (seu derradeiro filme que rodou numa cadeira de rodas), Visconti distinguiu-se sempre pelo que havia de mais excelente na sua natureza:um perfeccionismo obsessivo e um virtuosismo desarmante ,elegante, intenso, capaz de nos reconciliar com a vida e estimular-nos a gostar de arte.
quinta-feira, novembro 02, 2006
dores e crescimento
Um dos prazeres maiores de quando tinha 12 ou 13 anos, era estar nas noites de férias em casa do Duarte a ouvir música. Ouviamos discos, de toda a espécie de obras (Zeca Afonso, Chansons Revolucionaires, Brassens, Piaf, sonatas de Beethoven, Joan Baez, etc.), e à vezes, quando a melancolia (provocada pelos amores ausentes!) tomava conta de nós, ouviamos pela milésima vez Leonard Cohen, em especial "Suzanne".
Suzanne takes you down to her place near the river / You can hear the boats go by /You can spend the night beside her / And you know that she's half crazy / But that's why you want to be there / And she feeds you tea and oranges / That come all the way from China / And just when you mean to tell her / That you have no love to give her / Then she gets you on her wavelength / And she lets the river answer / That you've always been her lover / And you want to travel with her/ And you want to travel blind / And you know that she will trust you / For you've touched her perfect body with your mind... .
Lembro-me de às vezes fechar os olhos e chorar. Por causa das palavras. Por causa da música.
Suzanne takes you down to her place near the river / You can hear the boats go by /You can spend the night beside her / And you know that she's half crazy / But that's why you want to be there / And she feeds you tea and oranges / That come all the way from China / And just when you mean to tell her / That you have no love to give her / Then she gets you on her wavelength / And she lets the river answer / That you've always been her lover / And you want to travel with her/ And you want to travel blind / And you know that she will trust you / For you've touched her perfect body with your mind... .
Lembro-me de às vezes fechar os olhos e chorar. Por causa das palavras. Por causa da música.
quarta-feira, novembro 01, 2006
uma lição de cinema
Numa noite destas dei por mim a (re)deliciar-me (no canal Hollywood) com uma das mais memoráveis obras-primas de Joseph L.Mankiewicz, The Barefoot Contessa, com a belíssima Ava Gardner e Humphrey Bogart. Nunca será demais lembrar que a maior virtude do filme reside no ousado empreendimento de Mankiewicz que á epoca abalou as "convicções" do establishment: a demolição impiedosa de mitos (em especial, o "star system") e a subversão do conceito holywoodesco de melodrama. A conclusão moral de The Bareffot Contessa é que pode ser fatal a uma carreira de sucesso acreditar em contos de fadas (nem tão pouco nos irmãos Grimm!) sobretudo quando os príncipes encantados se podem transformar em assassinos. Excelente exercício de lucidez e enorme apogeu narrativo.
terça-feira, outubro 31, 2006
o fim da aventura
(Cena 11- plano 6-vez 04- exterior/dia)
Voz Off:
Voz Off:
Olhar o rio e recordar as palavras que tantas vezes fomos incapazes de dizer um ao outro. Palavras que já não importam ouvir porque as deixámos para trás no tempo de exaustão, já sem uma esperança de sonho e eternidade. Agora tenho o teu rosto só o teu rosto , muito belo e carregado de ternura, a converter a alegria em tristeza (e aflição).
Sigo-te, câmara na mão num travelling tremido que me pareceu interminável, rua abaixo, com braço a doer a deixar-me conduzir pelo teu andar apressado e firme.
Talvez a esta lembrança se tenha seguido outra -aquela do plano de conjunto junto ao miradouro- a seguir ao instante em que beijaste os meus cabelos e ficámos a olhar para as sombras dos nossos corpos projectadas no alfalto negro da rua estreita.
Meros rumores, rumores apenas e não prodígios como poderias estar a pensar.
Lisboa, Entrecampos, Setembro 1983
segunda-feira, outubro 30, 2006
palavras de ramiro correia
um dia dei por mim a chorar
e o meu avô que é marinheiro
e morreu agarrando o sol com as duas mãos
atravessou o riacho
e com o seu sorriso de buzio e maio
atirou-me um cacho de uvas
foi assim
Ramiro Correia, Comandante,
membro da Coordenadora do M.F.A.
in, Na Clivagem do Tempo, edição de autor - junho 1973
e o meu avô que é marinheiro
e morreu agarrando o sol com as duas mãos
atravessou o riacho
e com o seu sorriso de buzio e maio
atirou-me um cacho de uvas
foi assim
Ramiro Correia, Comandante,
membro da Coordenadora do M.F.A.
in, Na Clivagem do Tempo, edição de autor - junho 1973
imagens do real
Na passada semana revisita a Industrial Britain, o clássico documentário de Robert Flaherty e John Grierson, por ocasião do docLisboa 2006. Pena é que a programação (excelente como sempre) não tenha incluído dessa dupla outros admiráveis momentos máximos, como Man of Aran(Flaherty) e Driffters(Grierson) que raramente acedem ao ecrãs dos festivais. Fica para a próxima, não!?.
domingo, outubro 29, 2006
palavras de giuseppe ungaretti
Silêncio
Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo desaparece num momento
Cheguei lá quse à noite
No coração durava o ruído
das cigarras
Do navio
envernizado de branco
eu vi
a minha cidade perder-se
deixando
um pouco
um abarço de lumes no ar indeciso
suspensos
Giusepe Ungaretti
in Sentimento do Tempo
(Publicações D.Quixote / Cadernos de Poesia, fev.1971)
Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo desaparece num momento
Cheguei lá quse à noite
No coração durava o ruído
das cigarras
Do navio
envernizado de branco
eu vi
a minha cidade perder-se
deixando
um pouco
um abarço de lumes no ar indeciso
suspensos
Giusepe Ungaretti
in Sentimento do Tempo
(Publicações D.Quixote / Cadernos de Poesia, fev.1971)
sábado, outubro 28, 2006
notas soltas
1.Nos últimos tempos tenho andado com vontade de ler Flaubert (contra quem sempre tive uma certa animosidade que não sei bem explicar porquê), Sartre (Les Séquestrés d'Altona e Les Mots...) e até Garaudy, por razões da experiência, digamos do vivido, e por uma atracção pelo religioso. Tudo autores que já conhecia mas não o suficiente. Esta necessidade tem muito pouco de extraordinário convenhamos, embora me continue a ocupar (menos, reconheço-o) da leitura de poesia mas sem "novidades" maiores porque tenho sentido é a necessidade de me voltar para a releitura daquilo que me é mais familiar : Pessoa, T.S.Elliott, Ungaretti, Carlos de Oliveira, Sophia, Armindo Rodrigues, Rimbaud, Ruy Belo... .
2.As questões da justiça, ou mais prosaicamente, o funcionamento do sistema judiciário português, tem-me ocupado desde há um ano, por razões bem sabidas dos que me são mais próximos, claro.O que me tem agradado nas leituras (de acordãos, de alegações...) não é tanto a retórica (algo pobre na maioria dos casos) mas a preocupação de certos magistrados em fazer crer que as decisões de penas são tomadas em total "independência" das pressões políticas ou outras. É aquilo a que eu chamo o esquema abstrato da independência!
3.La Voie Lactée, de Luís Buñuel, tem sido desde o fim do verão (calendáriamente falando...)
um "recurso" a que tenho recorrido "n" vezes. O que mais admiro em Buñuel não é apenas a capacidade em desmascarar a impostura desse enorme disfarce chamado catolicismo, é fazê-lo a partir das próprias considerações dogmáticas da Igreja. Corrosivo e irónico como sempre.
2.As questões da justiça, ou mais prosaicamente, o funcionamento do sistema judiciário português, tem-me ocupado desde há um ano, por razões bem sabidas dos que me são mais próximos, claro.O que me tem agradado nas leituras (de acordãos, de alegações...) não é tanto a retórica (algo pobre na maioria dos casos) mas a preocupação de certos magistrados em fazer crer que as decisões de penas são tomadas em total "independência" das pressões políticas ou outras. É aquilo a que eu chamo o esquema abstrato da independência!
3.La Voie Lactée, de Luís Buñuel, tem sido desde o fim do verão (calendáriamente falando...)
um "recurso" a que tenho recorrido "n" vezes. O que mais admiro em Buñuel não é apenas a capacidade em desmascarar a impostura desse enorme disfarce chamado catolicismo, é fazê-lo a partir das próprias considerações dogmáticas da Igreja. Corrosivo e irónico como sempre.
sexta-feira, outubro 27, 2006
joan crawford: in memorian
No Firmamento apagado
não luciluzem mais estrelas de cinema.
Greta Garbo
passeia ingógnita a solidão de sua solitude.
Marlene Dietrich
quebrou a perna mítica de valquíria.
Joan Crawford,
produtora de refrigerantes, o coração a matou.
O cinema é uma fábula de antigamente
(ontem passou a ser antigamente)
contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,
a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.
O nome perdura. Também é outra coisa.
Tudo é outra coisa, depois que envelhecemos.
E não há mais deusas e deuses. Há figurinhas
móveis, falantes, coloridas, projectadas
no interior da casa. Não saem nunca mais,
enqunto se esvazia o céu da grécia
dentro de nós -azul já negro, ou neutra-cor.
Joan, não beberei por ti, à guisa de luto, nenhum líquido fácil e moderno.
Sorvo tua lembrança
a lentos goles.
Carlos Drummond de Andrade
in Discurso da primavera e outras sombras
não luciluzem mais estrelas de cinema.
Greta Garbo
passeia ingógnita a solidão de sua solitude.
Marlene Dietrich
quebrou a perna mítica de valquíria.
Joan Crawford,
produtora de refrigerantes, o coração a matou.
O cinema é uma fábula de antigamente
(ontem passou a ser antigamente)
contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,
a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.
O nome perdura. Também é outra coisa.
Tudo é outra coisa, depois que envelhecemos.
E não há mais deusas e deuses. Há figurinhas
móveis, falantes, coloridas, projectadas
no interior da casa. Não saem nunca mais,
enqunto se esvazia o céu da grécia
dentro de nós -azul já negro, ou neutra-cor.
Joan, não beberei por ti, à guisa de luto, nenhum líquido fácil e moderno.
Sorvo tua lembrança
a lentos goles.
Carlos Drummond de Andrade
in Discurso da primavera e outras sombras
quarta-feira, outubro 25, 2006
palavras de carlos de oliveira
Vento
As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético
segunda-feira, outubro 23, 2006
"Trás-os-Montes", longe da vista
foto de arquivo
Fez trinta anos em Junho que António Reis e Margarida Cordeiro nos deram a ver -primeiro numa circunstancial ante-estreia na Gulbenkian, depois na salinha do Satélite no ex-Cinema Monumental- a sua primeira longa-metragem: Trás-Os-Montes, um filme poético e ousado sobre a fascinação da terra transmontana no país profundo, que o fascismo dos "brandos costumes" votou ao ostracismo durante décadas a fio.
Após a estreia, Trás-os-Montes teve direito a elogios por parte de alguma (a menos dogmática, claro) da "inteligentzia" lusitana que viu nele uma "achado"fílmico, didáctico e reflexivo, capaz de colocar Portugal nos lugares cimeiros da cultura cinematográfica europeia. Como não podia deixar de ser, o filme não desmereceu a atenção das vozes dissonantes nacionais mais retrógadas, do tipo santa inquisição (telegramas enviados á Secretaria de Estado da Cultura pediam a queima do filme!) e do caciquismo ad eternum.
De alguns dos nomes maiores da História do Cinema, como Joris Ivens, vieram os maiores elogios; os Cahiers..., promoveram-no (como a generalidade da imprensa e crítica europeia) ao primeiro galarim; nos festivais de renome as salas esgotavam e ninguém arredava pé.
Trinta anos depois, se Trás-Os-Montes se distingue de quaisquer outros filmes portugueses, distingue-se sobretudo pela ousadia de fazer um filme de "género inclassificável", da sua temática e da sua proposta narrativa. Trinta anos depois, Trás-Os Montes permanece no limbo e no esquecimento apesar de fugazes exibições na Cinemateca Portuguesa e da atenção (a única homenagem "oficial" a Reis, até á data) de que foi alvo, em 1995, promovida pelo Sector de Cinema do Inatel em sessão realizada no Quarteto e, anos depois, a retrospectiva (integral) promovida pelo Cineclube de Faro.
"Milagre" menor a averbar: o de Trás-os-Montes continuar a ser ignorado ( tal como toda a restante obra de Reis/Cordeiro) pelo mercado vídeo. O que quer dizer que , mais uma vez, se pode dirigir uma valente pateada aos editores de dvd's deste país.
domingo, outubro 22, 2006
revendo cassavetes
Em Shadows estamos perante um daqueles casos extremos em que a banda sonora (marcada pelo jazz) não só é tão importante como a imagem como a sobredetermina. O melhor em Cassavetes sempre foi a sua vocação para histórias intímas às quais nunca (poderia) faltar uma ponta de ambiguidade e melancolia que derivaram sempre da forte dramaticidade que lhe foi tão característica em todos os seus trabalhos, desde Shadows e até Love Streams, seu derradeiro filme que contou também com a prestação (habitual) de sua mulher, a sublime actriz Gena Rowlands.
o fracasso do sonho imperial
As baixas militares norte-americanas no Iraque conheceram este mês novo pico (o número de soldados mortos já vai em 80...) o que vem alarmando ainda mais as hierarquias do Pentágono e reforçou a tese defendida por dezenas de generais de que a estratégia delineada pela Casa Branca -antes mesmo da invasão do país há três anos- foi um "erro" monumental, uma irresponsabilidade assente em falsidades e inventonas de todo o tipo usadas para justificar o injustificável.
O sonhado passeio triunfal das tropas invasoras nas ruas de Bagdade que vinham libertar a nação iraquiana do jugo de Saddam nunca se verificou. Nem tão pouco as lagartas dos blindados que percorreram as artérias de Bagdad não o fizeram em cima de tapetes de flores como idealizaram Rumsfeld e seus sequazes.Mesmo as poucas dezenas de "iraquianos" que assistiram à derrocada da estátua em Bagdad do ditador Saddam Hussein não eram mais do que soldados norte-americanos meio-vestidos a arabes os únicos a dar nas vistas, como ficou demonstrado em dezenas de fotos publicadas em outras tantas páginas online ou em matutinos de referência.
Os milhões de dólares usados (diz-se, na compra de generais da temida guarda republicana, de centenas de informadores e da minoria de exilados afortunados no Ocidente, etc.) funcionaram no início mas não foram suficientes para evitar o caos e a barbárie instalada pelo comportamento das forças ocupantes.
Ao invés da democracia prometida os Estados Unidos elegeram logo no primeiro ano a máxima: em cada iraquiano suspeito um iraquiano a abater. Transformaram Abu Ghraib num santuário de tortura e bestialidade, um entretenimento sádico para soldados e oficiais desumanizados que violentavam jovens estudantes (muitos com menos de 16 anos) e condenavam à morte lenta dezenas de homens obrigados a cumprir todo o tipo de insanidades sob a ameaça de armas.
A democracia prometida jaz há muito também a partir do momento em que as tropas ocupantes passaram a contar com a ajuda "desinteressada" de atiradores de elite (snipers) vindos de Israel, Tchetchenia e da guerra do Kosovo que se tem empenhado no extermínio selectivo e calculado de quadros importantes da nação iraquiana: professores, politicos, cientistas, opositores , etc. com o propósito de destruir o Iraque enqaunto nação e provocar uma guerra civil por forma a fragmentar o país em especies de "cantões" federados. Uma solução "higiénica" que hipoteticamente manteria sob a alçada do invasor-ocupante a maioria dos recursos do Iraque.
Ao invés da democracia prometida por Bush, os iraquianos assistiram impotentes ao saque dos seus bens patrimoniais e históricos (roubados do interior de museus vandalizados) a maior parte "recapturado" em pequenos aeroportos de cidadezinhas do interior da América. Os milhões de dólares disponibilizados para a alegada "reconstrução das infra-estruturas do Iraque" foram sendo na sua maioria desviadas para contas de cidadãos norte-americanos, como o revelam inúmeras fontes insuspeitas dentro dos Estados Unidos.
A recente e arrasadora crítica do general britânico que ousou defender a retirada total e imediata dos soldados de Sua Majestade ( a que se seguiu a do seu homólogo australiano, pouco ou nada difundido nos meios de comunicação portugueses, o que se compreende...), a criticas dos generais do Pentágono, o reconhecimento por parte de Bush de que o Iraque "é um novo Vietnam"e a atribuição a James Baker de uma missão de alta importância que possa (através de contactos com todos os movimentos de guerrrilha iraquianos -mas também que englobe os governos "inimigos" do Irão e da Síria) evitar o descalabro e descontrolo total da situação militar no Iraque, já considerada de "derrota".
Falhados todos os objectivos principais que Rumsfeld previu no seu "caderno de encargos" para o Iraque, resta agora aos Estados Unidos não perder completamente a face. No fundo, no fundo, o que levou os Estados Unidos para este "beco sem saída" foi o controle dos recursos naturais (água, petróleo e gas) como se encontram consubstanciados em numerosos documentos que vieram a lume nos ultimos quatro anos.
A aventura americana no Iraque contabiliza já mais de 655.000 mortos iraquianos: menos (ainda...) do milhão e quase meio de vietnamitas mortos em cerca de 12 anos de guerra. As baixas de cidadãos iraquianos arrisca-se a superar assim o dos vietnamitas. Superados estão já os mais de 200 mil japoneses assassinados em Hiroxima e Nagazaki em Agosto de 1945 quando foram lançadas sobre essas cidades nipónicas sem valor militar duas bombas atómicas que constribuiram poucos anos depois para detonar a corrida aos armamentos .
A aventura iraquiana que também custou a vida a cerca de 2800 (dados oficiais) militares norte-americanos e dezenas de milhares de feridos, a maioria grave, pode perfeitamente vir a despoletar um movimento interno que contribua para afastar Bush da Presidência , promover novas eleições e instalar na Casa Branca um Presidente inteligente para quem o bom senso não seja uma palavra vã.
O sonhado passeio triunfal das tropas invasoras nas ruas de Bagdade que vinham libertar a nação iraquiana do jugo de Saddam nunca se verificou. Nem tão pouco as lagartas dos blindados que percorreram as artérias de Bagdad não o fizeram em cima de tapetes de flores como idealizaram Rumsfeld e seus sequazes.Mesmo as poucas dezenas de "iraquianos" que assistiram à derrocada da estátua em Bagdad do ditador Saddam Hussein não eram mais do que soldados norte-americanos meio-vestidos a arabes os únicos a dar nas vistas, como ficou demonstrado em dezenas de fotos publicadas em outras tantas páginas online ou em matutinos de referência.
Os milhões de dólares usados (diz-se, na compra de generais da temida guarda republicana, de centenas de informadores e da minoria de exilados afortunados no Ocidente, etc.) funcionaram no início mas não foram suficientes para evitar o caos e a barbárie instalada pelo comportamento das forças ocupantes.
Ao invés da democracia prometida os Estados Unidos elegeram logo no primeiro ano a máxima: em cada iraquiano suspeito um iraquiano a abater. Transformaram Abu Ghraib num santuário de tortura e bestialidade, um entretenimento sádico para soldados e oficiais desumanizados que violentavam jovens estudantes (muitos com menos de 16 anos) e condenavam à morte lenta dezenas de homens obrigados a cumprir todo o tipo de insanidades sob a ameaça de armas.
A democracia prometida jaz há muito também a partir do momento em que as tropas ocupantes passaram a contar com a ajuda "desinteressada" de atiradores de elite (snipers) vindos de Israel, Tchetchenia e da guerra do Kosovo que se tem empenhado no extermínio selectivo e calculado de quadros importantes da nação iraquiana: professores, politicos, cientistas, opositores , etc. com o propósito de destruir o Iraque enqaunto nação e provocar uma guerra civil por forma a fragmentar o país em especies de "cantões" federados. Uma solução "higiénica" que hipoteticamente manteria sob a alçada do invasor-ocupante a maioria dos recursos do Iraque.
Ao invés da democracia prometida por Bush, os iraquianos assistiram impotentes ao saque dos seus bens patrimoniais e históricos (roubados do interior de museus vandalizados) a maior parte "recapturado" em pequenos aeroportos de cidadezinhas do interior da América. Os milhões de dólares disponibilizados para a alegada "reconstrução das infra-estruturas do Iraque" foram sendo na sua maioria desviadas para contas de cidadãos norte-americanos, como o revelam inúmeras fontes insuspeitas dentro dos Estados Unidos.
A recente e arrasadora crítica do general britânico que ousou defender a retirada total e imediata dos soldados de Sua Majestade ( a que se seguiu a do seu homólogo australiano, pouco ou nada difundido nos meios de comunicação portugueses, o que se compreende...), a criticas dos generais do Pentágono, o reconhecimento por parte de Bush de que o Iraque "é um novo Vietnam"e a atribuição a James Baker de uma missão de alta importância que possa (através de contactos com todos os movimentos de guerrrilha iraquianos -mas também que englobe os governos "inimigos" do Irão e da Síria) evitar o descalabro e descontrolo total da situação militar no Iraque, já considerada de "derrota".
Falhados todos os objectivos principais que Rumsfeld previu no seu "caderno de encargos" para o Iraque, resta agora aos Estados Unidos não perder completamente a face. No fundo, no fundo, o que levou os Estados Unidos para este "beco sem saída" foi o controle dos recursos naturais (água, petróleo e gas) como se encontram consubstanciados em numerosos documentos que vieram a lume nos ultimos quatro anos.
A aventura americana no Iraque contabiliza já mais de 655.000 mortos iraquianos: menos (ainda...) do milhão e quase meio de vietnamitas mortos em cerca de 12 anos de guerra. As baixas de cidadãos iraquianos arrisca-se a superar assim o dos vietnamitas. Superados estão já os mais de 200 mil japoneses assassinados em Hiroxima e Nagazaki em Agosto de 1945 quando foram lançadas sobre essas cidades nipónicas sem valor militar duas bombas atómicas que constribuiram poucos anos depois para detonar a corrida aos armamentos .
A aventura iraquiana que também custou a vida a cerca de 2800 (dados oficiais) militares norte-americanos e dezenas de milhares de feridos, a maioria grave, pode perfeitamente vir a despoletar um movimento interno que contribua para afastar Bush da Presidência , promover novas eleições e instalar na Casa Branca um Presidente inteligente para quem o bom senso não seja uma palavra vã.
sexta-feira, outubro 20, 2006
o ovo da serpente
Der Jungle Torless (O Jovem Torless), o inquietante romance de Robert Musil -editado pela Livros do Brasil- que Volker Schlondorff transpôs para o ecrán em 1965 (estranhamente nunca editado em vídeo entre nós) continua a ser considerado um dos filmes mais emblemáticos sobre a natureza do mal e a tentação fascista que de vez em quando assola as sociedades em períodos de decadência. Visto também como prenúncio da ascensão do nazismo.
quinta-feira, outubro 19, 2006
ácido e cool
Revisitar (em cópia dvd) Mystery Train, deixou-me a sensação -é curioso...- de maior estima por Jim Jarmusch. O reencontro com os hóspedes dum hotel decadente de Memphis, cidade mítica da melhor música popular norte-americana permanece peculiar e continua a "mexer" comigo. Mystery Train , note-se, é também o título de uma canção célebre de Tom Waits.
quarta-feira, outubro 18, 2006
o caminho da serpente
Margritte: reproduction interdite
De tanto se resignar (à impotência) o português já não estranha o fogo rápido que sob ele se vem abatendo em nome dos pressupostos da crise não, o português já só deixa se entranhar, não obstante manter uma réstea muito fugaz de esperança... em que o pesadelo passe a ser visto como um cataclismo da natureza...dos homens evidentemente e que outros (homens não necessariamente humanos) saberão superar -e quase de certeza- sem a ajuda dos milagrosos ansiolíticos e antidepressivos que se esgotam de forma impressionante nas farmácias para gáudio dos laboratórios... .
De tanto se resignar (à impotência) o português já não estranha o fogo rápido que sob ele se vem abatendo em nome dos pressupostos da crise não, o português já só deixa se entranhar, não obstante manter uma réstea muito fugaz de esperança... em que o pesadelo passe a ser visto como um cataclismo da natureza...dos homens evidentemente e que outros (homens não necessariamente humanos) saberão superar -e quase de certeza- sem a ajuda dos milagrosos ansiolíticos e antidepressivos que se esgotam de forma impressionante nas farmácias para gáudio dos laboratórios... .
O português já se cansou de tentar perceber onde pára a solução, justa e consensual, para os problemas do hiperendividamento das contas públicas do país, se os "grandes" (senhores e interesses) ficam sempre fora da zona de risco. O que explica a razão por que a crise faz felizes e descontraídos outros portugueses , em número muito mais reduzido, como é certo.
A felicidade exige sabedoria e talento. O português comum, constrangido e forçado a andar de mãos levantadas -longe dos bolsos, portanto- não o sabe, por certo. O primeiro-ministro sabe o que o português sabe (ou julga saber) sobre as políticas de "salvação" do sistema que estão sendo servidas a "frio" semanalmente e o que elas valem e valerão no futuro próximo.
Forçoso é, de qualquer modo, reaprender ou reajustar(!) algumas regras básicas de sobrevivência. Uma dessas regras diz respeito à atracção (fatal) por um antigo e popular mandamento "social" -salve-se quem puder! Isto quer dizer : os valores -os poucos que ainda rareiam- devem continuar a ser eclipsados. E pesem os circunstancialismos, muitas mentalidades já perceberam isso. É também por aí que a crise , na sua fúria reparadora, só pode trazer benefícios a uns e ilusões a muitos mais.Que tamanha felicidade!
Oeiras, 12 Setembro 2006
A felicidade exige sabedoria e talento. O português comum, constrangido e forçado a andar de mãos levantadas -longe dos bolsos, portanto- não o sabe, por certo. O primeiro-ministro sabe o que o português sabe (ou julga saber) sobre as políticas de "salvação" do sistema que estão sendo servidas a "frio" semanalmente e o que elas valem e valerão no futuro próximo.
Forçoso é, de qualquer modo, reaprender ou reajustar(!) algumas regras básicas de sobrevivência. Uma dessas regras diz respeito à atracção (fatal) por um antigo e popular mandamento "social" -salve-se quem puder! Isto quer dizer : os valores -os poucos que ainda rareiam- devem continuar a ser eclipsados. E pesem os circunstancialismos, muitas mentalidades já perceberam isso. É também por aí que a crise , na sua fúria reparadora, só pode trazer benefícios a uns e ilusões a muitos mais.Que tamanha felicidade!
Oeiras, 12 Setembro 2006
terça-feira, outubro 17, 2006
sábado á tarde
(escrito a pensar filmar...)
Reparo que trazes a saia de ganga que compráramos em saldo numa loja recatada das avenidas novas naquele sábado chuvoso e frio em que demos as mãos ao fim de muito tempo de receio mútuo. Reparo também que o teu sorriso já não é o mesmo desse dia, nem o teu olhar é luminoso como quando nos encontrámos no pequeno café de bairro antes da matinée no quarteto, nem quando nos despedimos demoradamente horas depois junto ao cais. Reparo ainda que o teu andar não é o teu andar, porque os passos que dás, até mim, já não tem o encanto e a subtileza dos passos qaundo avançavas para mim. Reparo, reparo ainda mais: na forma como procuras esconder o teu olhar do meu olhar, como administras o nervosismo (com o teu característico toque do dedo indicador no canto do lábio superior...) e com que dificuldade procuras a posição confortável na cadeira. Reparo, finalmente, que durante toda esta tarde só me fixaste uma vez, uma única vez (e me tocaste na face com carinho, reconheço-o) com o olhar mais triste que nunca te vi... .Mais triste e só, antes de me beijares e abandonares o café lentamente e eu só te perder, de vista, através da vidraça da montra. Com a morte dentro.
Lisboa, Jardim do Princípe Real, Maio de 2001
definição de juventude
... A imagem de indivíduos que tentam viver de acordo com o seu próprio ritmo em um envolvimento moral que é ou de uma estreiteza sufocante ou de uma altura ameaçadora, mas nunca á medida da solidariedade espontânea que estão prontos a oferecer. Anti-sociais por razão de lealdade e rebeldes por força específica de circunstâncias definidas...
Thomas Elsaesser
questão de identidade
Max Frisch foi uma descoberta (feliz) feita quase ao acaso -já lá vão 12 anos-, quando procurava outro autor (Harold Pinter, para que conste) com provas dadas também na escrita teatral. Chamem-me Gantenbein ( edição da Arcádia) é um romance sobre um homem que finge ser cego "sem o ser, que é cego para os outros, principalmente para a mulher que o ama, porque ele não vê...tudo aquilo que destruiria o amor...". Frisch é, surpreendentemente, sublime.
domingo, outubro 15, 2006
beckett
O que me atrai na personalidade incontornável do grande escritor irlandês, Samuel Beckett é a sua sensibilidade radical: hipersensível, hipercrítico -tanto em relação a si como aos outros- Beckett posicionou a vida na margem do limbo. Essa opção que diria, ser absolutamente consciente e que lhe trouxe como que se sabe consequências, (isolamento social; viveu os últimos anos de vida como um eremita) não foi mais do que uma via (dolorosa e necessária) para a afirmação punjante do seu poder criativo e qualidades reflexivas.
O que me atrai também em Beckett não é apenas o lado exasperado, alucinante e obsessivo da solidão (a incomunicabilidade) do Homem na sociedade moderna mas a consciência da sua resignação e impotência.
No ano em que se celebra o centenário do seu nascimento, recordemos o poema, Os ossos de Eco:
asilo sob os meus passos este dia inteiro
os seus folguedos abafados enquanto a carne se desmorona
arrotando sem receio sem pavor
percorrida a punitiva fileira da sensatez e insensatez
tomados pelos vermes por aquilo que são
sábado, outubro 14, 2006
viagem no tempo
Foto: Fernando Negreira
1976: o olhar semi-ocupado na leitura dos Cahiers du Cinéma numa tarde de primavera nas instalações do Centro Estudantil de Fotografia e Cinema (lugar de divulgação do cinema de autor e militante) em Lisboa, na rua dona Estefânea. Em contracampo, poster de "Che" Guevara, um ídolo que me ficou para sempre incrustado na retina.
1976: o olhar semi-ocupado na leitura dos Cahiers du Cinéma numa tarde de primavera nas instalações do Centro Estudantil de Fotografia e Cinema (lugar de divulgação do cinema de autor e militante) em Lisboa, na rua dona Estefânea. Em contracampo, poster de "Che" Guevara, um ídolo que me ficou para sempre incrustado na retina.
sexta-feira, outubro 13, 2006
momento de "ilusão"
Que tem de especial a música de Eleni Karaindrou -compositora de enorme mérito que vem assinando as bandas sonoras dos filmes de Angelopoulos- que ouço (teimosamente e sem auriculares!) quase todas as noites desde há anos? Lirismo? Poesia? Nostalgia? Provavelmente por tudo isto.E também por instinto (de sobrevivência?), e pela busca dum momento sensitivo, muito forte, de libertação. Ou, se quiserem, da sua ilusão.
quinta-feira, outubro 12, 2006
dias puros
foto cá-de-casa
Filmando uma manifestação numa noite de outono de 1974, em Lisboa (Alameda D. Afonso Henriques): ao centro, da esquerda para a direita - o Roy Rosado, Eu (de bolex paillard em punho) e o Pedro Macedo (de óculos).
Foi o tempo de todas as esperanças; o tempo dos (im)possíveis, o tempo de ir sem medo, de experimentar o risco; o tempo de ver o sonho transformar o pensamento...
Foi o tempo de todas as esperanças; o tempo dos (im)possíveis, o tempo de ir sem medo, de experimentar o risco; o tempo de ver o sonho transformar o pensamento...
cidadãos de "sucesso"
Constatação (incómoda) de Manuel Antonio Pina no Jornal de Notícias de anteontem:
Para se ser livre é preciso coragem, muita coragem. (...) Porque é bem mais fácil sobreviver acobardando-se do que escolher livremente. Os locais de trabalho, a vida política, a mera existência social, estão (basta olhar em volta) cheios de cobardes de sucesso.
Para se ser livre é preciso coragem, muita coragem. (...) Porque é bem mais fácil sobreviver acobardando-se do que escolher livremente. Os locais de trabalho, a vida política, a mera existência social, estão (basta olhar em volta) cheios de cobardes de sucesso.
terça-feira, outubro 10, 2006
bertrand russell dixit
The first step in a fascist movement is the combination under an energetic leader of a number of men who possess more than the average share of leisure, brutality, and stupidity. The next step is to fascinate fools and muzzle the intelligent, by emotional excitement
on the one hand and terrorism on the other.
Bertrand Russell
(Freedom, Harcourt Brace, 1940)
domingo, outubro 08, 2006
não tenho palavras
A insónia da noite passada dói. Onde me magoa o corpo não sei.
Por momentos, (re)vejo o teu rosto no espelho do hall quando passo
para a sala ás escuras.As despedidas súbitas têm o sabor
a desejos irrealizados. Será?
O dia amanhece. Não tenho palavras para descrever a cólera.
A morte, na sua fria pontualidade, que veio roubar-te a vida com a impunidade de sempre e
deixar-nos no olhar a pior das saudades. Bicho laborioso que tudo consome.
Nesta hora ( o féretro vai em ombros para a carrinha) seguimos-te. Não temos palavras. Ficamos, como sempre, prisioneiros do silêncio e da dor. Humedecidos (e vergados) pela falta que nos fazes, já.
Lembras-te Mãe: dias e dias a fio a alimentar o sonho impossível do futuro melhor? Outra terra virá, fisicamente nova, -digo-te que nasce, mas da resistência.
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