sexta-feira, dezembro 08, 2006

automatismo

Singing in the Rain (1952), de Stanley Donen

Na brisa fria da tarde de final de Novembro lá vai ele, todo aperaltado de camisa branca desabotoada para se lhe ver os cabelos cinzentos do peito, calça de coutlé azul escuro e o velho blusão de pele castanho coçado. Lá vai ele, rua abaixo a vociferar impropérios do mais vernáculo dirigidos na aparência contra tudo e todos que passam mas, de facto, a nenhum alvo em particular. Lá vai ele, de cabeleira prateada desgrenhada a sorrir no intervalo breve de um palavrão soft ("os caras de cu estão a olhar, nunca viram?!! Sou igual a vocês, caras de cú!") indiferente á chuva que cai de forma impiedosa sobre todos mas não se importa.
Até entrar no único café aberto (repleto de senhoras e meninos presos pela mão vagamente assustados a verem a cortina de chuva intensa através da vidraça da montra) do largo atravancado de carros a apitarcom os limpa pára-brisas em frenético movimento, o Senhor Paulo do alto dos seus quase 63 anos, entra triunfalmente no café com o cumprimento usual, "boa noite, meus queridos mortais!" e põe quase toda agente de semblante carregado enquanto outros, poucos, lhe respondem com um sorriso e uns, mas afoitos, lhe respondem "os que vão morrer como tu também te desejam boa noite". O empregado, de cara de bebé, sorridente traz uma imperial que coloca à frente do Paulo ocupado na tentativa de acender um cigarro molhado que traz pendurado no canto da boca. Alguém lhe oferece um marlboro, ele agradece mas recusa, "prefiro um Camel molhadinho a essa coisa sem paladar" diz ao mesmo tempo que dá um gole na cerveja e solta um "Ah!". De súbito, o Paulo lá consegue acender o cigarro e logo de seguida ouve-se uma salva de palmas, vinda de uma mesa ocupada por três convivas deliciados a juntar copos de canecas no canto junto á parede. O Paulo , ergue o copo e agradece-lhes visivelmente satisfeito "este que vai morrer vos saúda!".
Saio do café com vontade de voltar a entrar, pagar um copo ao Paulo e passar com ele uma hora na conversa. Mas não acho que deva de o fazer para já. Mas adivinho o que vai na alma do Paulo.Para mais, o olhar esmagado de solidão, sem tristeza à vista, que ele mostra sem disfarce nem vergonha fez-me pensar na grandeza dos seus modos desprendidos de medo.
O Paulo vive em estado de ousadia permanente na cidade branca, bela como diz é certo, mas quase morta pelos crimes diários contra ela, pelo ostracismo a que é votada.
Dias depois, o Paulo salta-me ao caminho e atira-me um desafio irrecusável, "paga-me um copo!".Sentados a uma mesinha do british bar junto à montra, Paulo confidencia-me, "Já ninguém se indigna. A rua onde nasci (em Alcântara) está irreconhecível, diz em tom resignado mas não convencido. "As pessoas querem lá saber da felicidade de Lisboa, querem é continuar a esbanjar, esbanjar , esbanjar dinheiro para ver se encontram, a felicidade delas, mas não encontram a felicidade só a ilusão da mesma.
Nunca vão sentir o mesmo amor que sinto por Lisboa, nunca".
À saída, dou por mim a fixar o ar compenetrado do Paulo a olhar deliciado a chuva que caía forte e feio e na paisagem da praça repleta de automobilistas ansiosos a apitar. Chovia, chovia e o Paulo observava como se estivesse a ouvir uma dissertação filosófica interessante. O olhar de Paulo era o de um perturbado deslumbrado. Provavelmente, não tanto pela chuva mas mais pelo poder que ela tinha no momento de tudo perturbar num ápice.
Foi assim que vi pela última vez o Paulo, o Senhor 63 anos que um dia vindo do jornal Século deu em casa com o corpo da mulher caído de bruços na cozinha e nessa noite se pôs á janela a cantar "Ir e vir e ir, ao mar"do grupo Vozes na Luta. Para espanto do vizinhos , do médico legista, dos agentes da psp, dos bombeiros e do bairro inteiro.
Onde quer que estejas Paulo, fica bem!

Lisboa, Jardim do Principe Real, Setembro 2006

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