terça-feira, outubro 31, 2006

o fim da aventura

foto-cá-de-casa
(Cena 11- plano 6-vez 04- exterior/dia)
Voz Off:
Olhar o rio e recordar as palavras que tantas vezes fomos incapazes de dizer um ao outro. Palavras que já não importam ouvir porque as deixámos para trás no tempo de exaustão, já sem uma esperança de sonho e eternidade. Agora tenho o teu rosto só o teu rosto , muito belo e carregado de ternura, a converter a alegria em tristeza (e aflição).

Sigo-te, câmara na mão num travelling tremido que me pareceu interminável, rua abaixo, com braço a doer a deixar-me conduzir pelo teu andar apressado e firme.

Talvez a esta lembrança se tenha seguido outra -aquela do plano de conjunto junto ao miradouro- a seguir ao instante em que beijaste os meus cabelos e ficámos a olhar para as sombras dos nossos corpos projectadas no alfalto negro da rua estreita.
Meros rumores, rumores apenas e não prodígios como poderias estar a pensar.

Lisboa, Entrecampos, Setembro 1983

segunda-feira, outubro 30, 2006

palavras de ramiro correia

um dia dei por mim a chorar
e o meu avô que é marinheiro
e morreu agarrando o sol com as duas mãos
atravessou o riacho
e com o seu sorriso de buzio e maio
atirou-me um cacho de uvas
foi assim
Ramiro Correia, Comandante,
membro da Coordenadora do M.F.A.
in, Na Clivagem do Tempo, edição de autor - junho 1973

imagens do real

Na passada semana revisita a Industrial Britain, o clássico documentário de Robert Flaherty e John Grierson, por ocasião do docLisboa 2006. Pena é que a programação (excelente como sempre) não tenha incluído dessa dupla outros admiráveis momentos máximos, como Man of Aran(Flaherty) e Driffters(Grierson) que raramente acedem ao ecrãs dos festivais. Fica para a próxima, não!?.

domingo, outubro 29, 2006

palavras de giuseppe ungaretti

Silêncio
Conheço uma cidade
que cada dia se enche de sol
e tudo desaparece num momento
Cheguei lá quse à noite
No coração durava o ruído
das cigarras
Do navio
envernizado de branco
eu vi
a minha cidade perder-se
deixando
um pouco
um abarço de lumes no ar indeciso
suspensos
Giusepe Ungaretti
in Sentimento do Tempo
(Publicações D.Quixote / Cadernos de Poesia, fev.1971)

sábado, outubro 28, 2006

notas soltas

La Voie Lactée (1969), Luis Buñuel
1.Nos últimos tempos tenho andado com vontade de ler Flaubert (contra quem sempre tive uma certa animosidade que não sei bem explicar porquê), Sartre (Les Séquestrés d'Altona e Les Mots...) e até Garaudy, por razões da experiência, digamos do vivido, e por uma atracção pelo religioso. Tudo autores que já conhecia mas não o suficiente. Esta necessidade tem muito pouco de extraordinário convenhamos, embora me continue a ocupar (menos, reconheço-o) da leitura de poesia mas sem "novidades" maiores porque tenho sentido é a necessidade de me voltar para a releitura daquilo que me é mais familiar : Pessoa, T.S.Elliott, Ungaretti, Carlos de Oliveira, Sophia, Armindo Rodrigues, Rimbaud, Ruy Belo... .
2.As questões da justiça, ou mais prosaicamente, o funcionamento do sistema judiciário português, tem-me ocupado desde há um ano, por razões bem sabidas dos que me são mais próximos, claro.O que me tem agradado nas leituras (de acordãos, de alegações...) não é tanto a retórica (algo pobre na maioria dos casos) mas a preocupação de certos magistrados em fazer crer que as decisões de penas são tomadas em total "independência" das pressões políticas ou outras. É aquilo a que eu chamo o esquema abstrato da independência!
3.La Voie Lactée, de Luís Buñuel, tem sido desde o fim do verão (calendáriamente falando...)
um "recurso" a que tenho recorrido "n" vezes. O que mais admiro em Buñuel não é apenas a capacidade em desmascarar a impostura desse enorme disfarce chamado catolicismo, é fazê-lo a partir das próprias considerações dogmáticas da Igreja. Corrosivo e irónico como sempre.

sexta-feira, outubro 27, 2006

joan crawford: in memorian

No Firmamento apagado
não luciluzem mais estrelas de cinema.
Greta Garbo
passeia ingógnita a solidão de sua solitude.
Marlene Dietrich
quebrou a perna mítica de valquíria.
Joan Crawford,
produtora de refrigerantes, o coração a matou.
O cinema é uma fábula de antigamente
(ontem passou a ser antigamente)
contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,
a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.
O nome perdura. Também é outra coisa.
Tudo é outra coisa, depois que envelhecemos.
E não há mais deusas e deuses. Há figurinhas
móveis, falantes, coloridas, projectadas
no interior da casa. Não saem nunca mais,
enqunto se esvazia o céu da grécia
dentro de nós -azul já negro, ou neutra-cor.
Joan, não beberei por ti, à guisa de luto, nenhum líquido fácil e moderno.
Sorvo tua lembrança
a lentos goles.
Carlos Drummond de Andrade
in Discurso da primavera e outras sombras

quarta-feira, outubro 25, 2006

palavras de carlos de oliveira

Vento

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético

segunda-feira, outubro 23, 2006

"Trás-os-Montes", longe da vista


foto de arquivo
Fez trinta anos em Junho que António Reis e Margarida Cordeiro nos deram a ver -primeiro numa circunstancial ante-estreia na Gulbenkian, depois na salinha do Satélite no ex-Cinema Monumental- a sua primeira longa-metragem: Trás-Os-Montes, um filme poético e ousado sobre a fascinação da terra transmontana no país profundo, que o fascismo dos "brandos costumes" votou ao ostracismo durante décadas a fio.

Após a estreia, Trás-os-Montes teve direito a elogios por parte de alguma (a menos dogmática, claro) da "inteligentzia" lusitana que viu nele uma "achado"fílmico, didáctico e reflexivo, capaz de colocar Portugal nos lugares cimeiros da cultura cinematográfica europeia. Como não podia deixar de ser, o filme não desmereceu a atenção das vozes dissonantes nacionais mais retrógadas, do tipo santa inquisição (telegramas enviados á Secretaria de Estado da Cultura pediam a queima do filme!) e do caciquismo ad eternum.

De alguns dos nomes maiores da História do Cinema, como Joris Ivens, vieram os maiores elogios; os Cahiers..., promoveram-no (como a generalidade da imprensa e crítica europeia) ao primeiro galarim; nos festivais de renome as salas esgotavam e ninguém arredava pé.

Trinta anos depois, se Trás-Os-Montes se distingue de quaisquer outros filmes portugueses, distingue-se sobretudo pela ousadia de fazer um filme de "género inclassificável", da sua temática e da sua proposta narrativa. Trinta anos depois, Trás-Os Montes permanece no limbo e no esquecimento apesar de fugazes exibições na Cinemateca Portuguesa e da atenção (a única homenagem "oficial" a Reis, até á data) de que foi alvo, em 1995, promovida pelo Sector de Cinema do Inatel em sessão realizada no Quarteto e, anos depois, a retrospectiva (integral) promovida pelo Cineclube de Faro.

"Milagre" menor a averbar: o de Trás-os-Montes continuar a ser ignorado ( tal como toda a restante obra de Reis/Cordeiro) pelo mercado vídeo. O que quer dizer que , mais uma vez, se pode dirigir uma valente pateada aos editores de dvd's deste país.

domingo, outubro 22, 2006

revendo cassavetes

Em Shadows estamos perante um daqueles casos extremos em que a banda sonora (marcada pelo jazz) não só é tão importante como a imagem como a sobredetermina. O melhor em Cassavetes sempre foi a sua vocação para histórias intímas às quais nunca (poderia) faltar uma ponta de ambiguidade e melancolia que derivaram sempre da forte dramaticidade que lhe foi tão característica em todos os seus trabalhos, desde Shadows e até Love Streams, seu derradeiro filme que contou também com a prestação (habitual) de sua mulher, a sublime actriz Gena Rowlands.

o fracasso do sonho imperial

Free Press International
As baixas militares norte-americanas no Iraque conheceram este mês novo pico (o número de soldados mortos já vai em 80...) o que vem alarmando ainda mais as hierarquias do Pentágono e reforçou a tese defendida por dezenas de generais de que a estratégia delineada pela Casa Branca -antes mesmo da invasão do país há três anos- foi um "erro" monumental, uma irresponsabilidade assente em falsidades e inventonas de todo o tipo usadas para justificar o injustificável.
O sonhado passeio triunfal das tropas invasoras nas ruas de Bagdade que vinham libertar a nação iraquiana do jugo de Saddam nunca se verificou. Nem tão pouco as lagartas dos blindados que percorreram as artérias de Bagdad não o fizeram em cima de tapetes de flores como idealizaram Rumsfeld e seus sequazes.Mesmo as poucas dezenas de "iraquianos" que assistiram à derrocada da estátua em Bagdad do ditador Saddam Hussein não eram mais do que soldados norte-americanos meio-vestidos a arabes os únicos a dar nas vistas, como ficou demonstrado em dezenas de fotos publicadas em outras tantas páginas online ou em matutinos de referência.
Os milhões de dólares usados (diz-se, na compra de generais da temida guarda republicana, de centenas de informadores e da minoria de exilados afortunados no Ocidente, etc.) funcionaram no início mas não foram suficientes para evitar o caos e a barbárie instalada pelo comportamento das forças ocupantes.
Ao invés da democracia prometida os Estados Unidos elegeram logo no primeiro ano a máxima: em cada iraquiano suspeito um iraquiano a abater. Transformaram Abu Ghraib num santuário de tortura e bestialidade, um entretenimento sádico para soldados e oficiais desumanizados que violentavam jovens estudantes (muitos com menos de 16 anos) e condenavam à morte lenta dezenas de homens obrigados a cumprir todo o tipo de insanidades sob a ameaça de armas.
A democracia prometida jaz há muito também a partir do momento em que as tropas ocupantes passaram a contar com a ajuda "desinteressada" de atiradores de elite (snipers) vindos de Israel, Tchetchenia e da guerra do Kosovo que se tem empenhado no extermínio selectivo e calculado de quadros importantes da nação iraquiana: professores, politicos, cientistas, opositores , etc. com o propósito de destruir o Iraque enqaunto nação e provocar uma guerra civil por forma a fragmentar o país em especies de "cantões" federados. Uma solução "higiénica" que hipoteticamente manteria sob a alçada do invasor-ocupante a maioria dos recursos do Iraque.
Ao invés da democracia prometida por Bush, os iraquianos assistiram impotentes ao saque dos seus bens patrimoniais e históricos (roubados do interior de museus vandalizados) a maior parte "recapturado" em pequenos aeroportos de cidadezinhas do interior da América. Os milhões de dólares disponibilizados para a alegada "reconstrução das infra-estruturas do Iraque" foram sendo na sua maioria desviadas para contas de cidadãos norte-americanos, como o revelam inúmeras fontes insuspeitas dentro dos Estados Unidos.
A recente e arrasadora crítica do general britânico que ousou defender a retirada total e imediata dos soldados de Sua Majestade ( a que se seguiu a do seu homólogo australiano, pouco ou nada difundido nos meios de comunicação portugueses, o que se compreende...), a criticas dos generais do Pentágono, o reconhecimento por parte de Bush de que o Iraque "é um novo Vietnam"e a atribuição a James Baker de uma missão de alta importância que possa (através de contactos com todos os movimentos de guerrrilha iraquianos -mas também que englobe os governos "inimigos" do Irão e da Síria) evitar o descalabro e descontrolo total da situação militar no Iraque, já considerada de "derrota".
Falhados todos os objectivos principais que Rumsfeld previu no seu "caderno de encargos" para o Iraque, resta agora aos Estados Unidos não perder completamente a face. No fundo, no fundo, o que levou os Estados Unidos para este "beco sem saída" foi o controle dos recursos naturais (água, petróleo e gas) como se encontram consubstanciados em numerosos documentos que vieram a lume nos ultimos quatro anos.
A aventura americana no Iraque contabiliza já mais de 655.000 mortos iraquianos: menos (ainda...) do milhão e quase meio de vietnamitas mortos em cerca de 12 anos de guerra. As baixas de cidadãos iraquianos arrisca-se a superar assim o dos vietnamitas. Superados estão já os mais de 200 mil japoneses assassinados em Hiroxima e Nagazaki em Agosto de 1945 quando foram lançadas sobre essas cidades nipónicas sem valor militar duas bombas atómicas que constribuiram poucos anos depois para detonar a corrida aos armamentos .
A aventura iraquiana que também custou a vida a cerca de 2800 (dados oficiais) militares norte-americanos e dezenas de milhares de feridos, a maioria grave, pode perfeitamente vir a despoletar um movimento interno que contribua para afastar Bush da Presidência , promover novas eleições e instalar na Casa Branca um Presidente inteligente para quem o bom senso não seja uma palavra vã.

sexta-feira, outubro 20, 2006

o ovo da serpente

Der Jungle Torless (O Jovem Torless), o inquietante romance de Robert Musil -editado pela Livros do Brasil- que Volker Schlondorff transpôs para o ecrán em 1965 (estranhamente nunca editado em vídeo entre nós) continua a ser considerado um dos filmes mais emblemáticos sobre a natureza do mal e a tentação fascista que de vez em quando assola as sociedades em períodos de decadência. Visto também como prenúncio da ascensão do nazismo.

quinta-feira, outubro 19, 2006

ácido e cool

Revisitar (em cópia dvd) Mystery Train, deixou-me a sensação -é curioso...- de maior estima por Jim Jarmusch. O reencontro com os hóspedes dum hotel decadente de Memphis, cidade mítica da melhor música popular norte-americana permanece peculiar e continua a "mexer" comigo. Mystery Train , note-se, é também o título de uma canção célebre de Tom Waits.

quarta-feira, outubro 18, 2006

o caminho da serpente

Margritte: reproduction interdite
De tanto se resignar (à impotência) o português já não estranha o fogo rápido que sob ele se vem abatendo em nome dos pressupostos da crise não, o português já só deixa se entranhar, não obstante manter uma réstea muito fugaz de esperança... em que o pesadelo passe a ser visto como um cataclismo da natureza...dos homens evidentemente e que outros (homens não necessariamente humanos) saberão superar -e quase de certeza- sem a ajuda dos milagrosos ansiolíticos e antidepressivos que se esgotam de forma impressionante nas farmácias para gáudio dos laboratórios... .
O português já se cansou de tentar perceber onde pára a solução, justa e consensual, para os problemas do hiperendividamento das contas públicas do país, se os "grandes" (senhores e interesses) ficam sempre fora da zona de risco. O que explica a razão por que a crise faz felizes e descontraídos outros portugueses , em número muito mais reduzido, como é certo.
A felicidade exige sabedoria e talento. O português comum, constrangido e forçado a andar de mãos levantadas -longe dos bolsos, portanto- não o sabe, por certo. O primeiro-ministro sabe o que o português sabe (ou julga saber) sobre as políticas de "salvação" do sistema que estão sendo servidas a "frio" semanalmente e o que elas valem e valerão no futuro próximo.
Forçoso é, de qualquer modo, reaprender ou reajustar(!) algumas regras básicas de sobrevivência. Uma dessas regras diz respeito à atracção (fatal) por um antigo e popular mandamento "social" -salve-se quem puder! Isto quer dizer : os valores -os poucos que ainda rareiam- devem continuar a ser eclipsados. E pesem os circunstancialismos, muitas mentalidades já perceberam isso. É também por aí que a crise , na sua fúria reparadora, só pode trazer benefícios a uns e ilusões a muitos mais.Que tamanha felicidade!
Oeiras, 12 Setembro 2006

terça-feira, outubro 17, 2006

sábado á tarde

(escrito a pensar filmar...)
Reparo que trazes a saia de ganga que compráramos em saldo numa loja recatada das avenidas novas naquele sábado chuvoso e frio em que demos as mãos ao fim de muito tempo de receio mútuo. Reparo também que o teu sorriso já não é o mesmo desse dia, nem o teu olhar é luminoso como quando nos encontrámos no pequeno café de bairro antes da matinée no quarteto, nem quando nos despedimos demoradamente horas depois junto ao cais. Reparo ainda que o teu andar não é o teu andar, porque os passos que dás, até mim, já não tem o encanto e a subtileza dos passos qaundo avançavas para mim. Reparo, reparo ainda mais: na forma como procuras esconder o teu olhar do meu olhar, como administras o nervosismo (com o teu característico toque do dedo indicador no canto do lábio superior...) e com que dificuldade procuras a posição confortável na cadeira. Reparo, finalmente, que durante toda esta tarde só me fixaste uma vez, uma única vez (e me tocaste na face com carinho, reconheço-o) com o olhar mais triste que nunca te vi... .Mais triste e só, antes de me beijares e abandonares o café lentamente e eu só te perder, de vista, através da vidraça da montra. Com a morte dentro.

Lisboa, Jardim do Princípe Real, Maio de 2001

definição de juventude

... A imagem de indivíduos que tentam viver de acordo com o seu próprio ritmo em um envolvimento moral que é ou de uma estreiteza sufocante ou de uma altura ameaçadora, mas nunca á medida da solidariedade espontânea que estão prontos a oferecer. Anti-sociais por razão de lealdade e rebeldes por força específica de circunstâncias definidas...
Thomas Elsaesser

questão de identidade

Max Frisch foi uma descoberta (feliz) feita quase ao acaso -já lá vão 12 anos-, quando procurava outro autor (Harold Pinter, para que conste) com provas dadas também na escrita teatral. Chamem-me Gantenbein ( edição da Arcádia) é um romance sobre um homem que finge ser cego "sem o ser, que é cego para os outros, principalmente para a mulher que o ama, porque ele não vê...tudo aquilo que destruiria o amor...". Frisch é, surpreendentemente, sublime.

domingo, outubro 15, 2006

beckett

O que me atrai na personalidade incontornável do grande escritor irlandês, Samuel Beckett é a sua sensibilidade radical: hipersensível, hipercrítico -tanto em relação a si como aos outros- Beckett posicionou a vida na margem do limbo. Essa opção que diria, ser absolutamente consciente e que lhe trouxe como que se sabe consequências, (isolamento social; viveu os últimos anos de vida como um eremita) não foi mais do que uma via (dolorosa e necessária) para a afirmação punjante do seu poder criativo e qualidades reflexivas.

O que me atrai também em Beckett não é apenas o lado exasperado, alucinante e obsessivo da solidão (a incomunicabilidade) do Homem na sociedade moderna mas a consciência da sua resignação e impotência.

No ano em que se celebra o centenário do seu nascimento, recordemos o poema, Os ossos de Eco:

asilo sob os meus passos este dia inteiro
os seus folguedos abafados enquanto a carne se desmorona
arrotando sem receio sem pavor
percorrida a punitiva fileira da sensatez e insensatez
tomados pelos vermes por aquilo que são

sábado, outubro 14, 2006

viagem no tempo

Foto: Fernando Negreira

1976: o olhar semi-ocupado na leitura dos Cahiers du Cinéma numa tarde de primavera nas instalações do Centro Estudantil de Fotografia e Cinema (lugar de divulgação do cinema de autor e militante) em Lisboa, na rua dona Estefânea. Em contracampo, poster de "Che" Guevara, um ídolo que me ficou para sempre incrustado na retina.

sexta-feira, outubro 13, 2006

momento de "ilusão"

Que tem de especial a música de Eleni Karaindrou -compositora de enorme mérito que vem assinando as bandas sonoras dos filmes de Angelopoulos- que ouço (teimosamente e sem auriculares!) quase todas as noites desde há anos? Lirismo? Poesia? Nostalgia? Provavelmente por tudo isto.E também por instinto (de sobrevivência?), e pela busca dum momento sensitivo, muito forte, de libertação. Ou, se quiserem, da sua ilusão.

quinta-feira, outubro 12, 2006

dias puros

foto cá-de-casa
Filmando uma manifestação numa noite de outono de 1974, em Lisboa (Alameda D. Afonso Henriques): ao centro, da esquerda para a direita - o Roy Rosado, Eu (de bolex paillard em punho) e o Pedro Macedo (de óculos).
Foi o tempo de todas as esperanças; o tempo dos (im)possíveis, o tempo de ir sem medo, de experimentar o risco; o tempo de ver o sonho transformar o pensamento...

cidadãos de "sucesso"

Constatação (incómoda) de Manuel Antonio Pina no Jornal de Notícias de anteontem:
Para se ser livre é preciso coragem, muita coragem. (...) Porque é bem mais fácil sobreviver acobardando-se do que escolher livremente. Os locais de trabalho, a vida política, a mera existência social, estão (basta olhar em volta) cheios de cobardes de sucesso.

terça-feira, outubro 10, 2006

bertrand russell dixit

The first step in a fascist movement is the combination under an energetic leader of a number of men who possess more than the average share of leisure, brutality, and stupidity. The next step is to fascinate fools and muzzle the intelligent, by emotional excitement
on the one hand and terrorism on the other.

Bertrand Russell
(Freedom, Harcourt Brace, 1940)

domingo, outubro 08, 2006

não tenho palavras

A insónia da noite passada dói. Onde me magoa o corpo não sei.

Por momentos, (re)vejo o teu rosto no espelho do hall quando passo
para a sala ás escuras.As despedidas súbitas têm o sabor
a desejos irrealizados. Será?

O dia amanhece. Não tenho palavras para descrever a cólera.

A morte, na sua fria pontualidade, que veio roubar-te a vida com a impunidade de sempre e
deixar-nos no olhar a pior das saudades. Bicho laborioso que tudo consome.

Nesta hora ( o féretro vai em ombros para a carrinha) seguimos-te. Não temos palavras. Ficamos, como sempre, prisioneiros do silêncio e da dor. Humedecidos (e vergados) pela falta que nos fazes, já.

Lembras-te Mãe: dias e dias a fio a alimentar o sonho impossível do futuro melhor? Outra terra virá, fisicamente nova, -digo-te que nasce, mas da resistência.

quinta-feira, outubro 05, 2006

à memória de minha mãe, clotilde maria

Nunca mais
Caminharás nos caminhos naturais.
Nunca mais te poderás sentir
Invulnerável, real e densa
-Para sempre está perdido
O que mais do que tudo procuraste
A plenitude de cada presença.

E será sempre o mesmo sonho, a mesma ausência.

Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, outubro 04, 2006

esta gente / essa gente

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unhas e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Ana Hatherly

terça-feira, outubro 03, 2006

cinema e poesia

O Espelho (ZerKalo, aka The Mirror) de Andrei Tarkovsky - 1975

segunda-feira, outubro 02, 2006

os amores de um soldado

Havia formigas por todo o corpo. Corriam
velozes nos braços. Uma grande parte delas
havia-se concentrado no peito em redor da ferida
provocada pelo projéctil.
O soldado tinha um olhar parado de espanto
Um pasmo de incompreensão? Talvez...
Uma, duas, por certo mais de seis formigas
percorriam-lhe o rosto com invulgar curiosidade,
como se descobrissem nele outra terra interior.
Lisboa, Entrecampos, 12 Fevereiro 1982