sábado, maio 26, 2007

santo ofício


Em certo sentido, a situação do país retira toda a razão aqueles que perderam toda e qualquer capacidade de visão do real e são já incapazes de ver distintamente a realidade que a todos circunda. Os sinais de pulsão autoritária, de intolerância e perversão dos valores da democracia que vieram esta semana a público do norte do país (episódio DREN e da sua dedicadíssima directora-geral, of course!) não se devem a meros circunstancialismos, ajustam-se na perfeição ao clima de fascização social reinante que se vem instalando (e alastrando, em pézinhos de lã) em alguns ministérios, institutos públicos, autarquias, bancos, empresas, etc. . Para a depuração ser eficaz "pedem-nos" que nos mantenhamos em estado de impotência serial.

quarta-feira, abril 18, 2007

palavras de gandhi

My notion of democracy is that under it the weakest shall have the same opportunities as the strongest...no country in the world today shows any but patronizing regard for the weak... Western democracy, as it functions today, is diluted fascism...true democracy cannot be worked by twenty men sitting at the center. It has to be worked from below, by the people of every village.

Gandhi

segunda-feira, abril 16, 2007

relembrar françoise hardy


Tous les garçons et les filles de mon âge
se promènent dans la rue deux par deux
tous les garçons et les filles de mon âge
savent bien ce que c’est d’être heureux
et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime
Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils
sans joies et pleins d’ennuis personne ne murmure “je t’aime”
à mon oreille
Tous les garçons et les filles de mon âge
font ensemble des projets d’avenir
tous les garçons et les filles de mon âge
savent très bien ce qu’aimer veut dire
et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s’en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l’âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m’aime
Mes jours comme mes nuits sont en tous points pareils
sans joies et pleins d’ennuis oh! quand donc pour moi brillera le soleil?
Comme les garçons et les filles de mon âge connaîtrais-je
bientôt ce qu’est l’amour?
comme les garçons et les filles de mon âge je me
demande quand viendra le jour
où les yeux dans ses yeux et la main dans sa main
j’aurai le cœur heureux sans peur du lendemain
le jour où je n’aurai plus du tout l’âme en peine
le jour où moi aussi j’aurai quelqu’un qui m’aime.
Françoise Hardy
(letra e música, 1962)


terça-feira, abril 10, 2007

clareza e síntese

No noticiário das 20 horas da Sic de ontem, o ministro Mariano Gago dispôs-se a falar do caso da licenciatura do primeiro-ministro, José Sócrates. Em menos de três minutos disse, com enorme clareza e bastante capacidade de síntese, como se processou o percurso académico do chefe do Governo. Em menos de três minutos, ficou a saber-se que a campanha erguida mansamente em certa imprensa pariu uma montanha... de omissões. Deliberadamente? Insidiosamente?.

Hemingway dixit

We have come out of the time when obedience, the acceptance of discipline, intelligent courage and resolution, were most important, into that more difficult time when it is a person's duty to understand the world rather than simply fight for it.
Ernest Hemingway

sábado, abril 07, 2007

lembrança de vinicius


Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.


Vinicius de Moraes

sexta-feira, março 16, 2007

encenadores da verdade

Cumprem-se hoje quatro anos que Bush, Blair, Aznar escolheram os Açores para anunciar ao mundo a decisão de assalto ao Iraque. Sabe-se hoje o que na altura já se adivinhava: a coberto de uma operação de manipulação da opinião pública mundial, os três magníficos mais um (o recepcionista Barroso!) revelaram-se tão inefáveis, tão inimitáveis, na sua encenação "brilhante" que se esqueceram que a realidade pós-Saddam haveria de se revelar, como se revela, uma farsa bem mais trágica, destruidora e sanguinária do que aquela em que os iraquianos viviam.

o (outro) cinema volta ao Trindade

Depois de Macbeth, de Orson Welles, anuncia-se para 27 de Março (Dia Mundial do Teatro) a projecção de Die Generalprobe / O Ensaio Geral, de Werner Schroeter, um documentário fora de vulgar (vencedor de grande prémio da Academia do Cinema Alemão) sobre a edição de 1980 do Festival Internacional de Teatro de Nancy. Depois, a partir de Abril, é a vez de Pina Bausch e o seu Tanztheater inaugurar no Trindade -na altura em que se anuncia a sua vinda a Lisboa- um curto mais significativo ciclo de filmes sobre a sua exemplar vida artística. Haverá oportunidade para aceder ao célebre "O Lamento da Imperatriz", sua primeira longa-metragem que permanece, à data, completamente desconhecida entre nós.
As sessões realizam-se na sala principal, às terças e quartas, pelas 17h30, com entrada livre.
Lá mais para a frente , Brecht subirá à cena através de uma colectânea de filmes documento de enorme valor histórico sobre alguns dos seus trabalhos maiores realizados em palco.

quinta-feira, março 15, 2007

do provincianismo

O director do Público, José Manuel Fernandes, falava ontem de "provincianismo" e "inveja" como estando na origem do afastamento do director do S. Carlos, o professor Pinamonti. Mesquinhez, acrescento eu, por mesquinhez -que grassa no país. Esperemos que o sucessor , Christoph Damman (se não estou em erro) seja tão bom quanto Pinamonti o foi, com bastante mérito (o suficiente para criar incómodos...) nestes seis anos em que esteve á frente dos destinos do S.Carlos.

segunda-feira, março 12, 2007

da paixão

Bertrand Tavernier, o realizador de Autour de Minuit (uma elegia à amizade e ao jazz, mais conhecido por Round Midnight), que os espectadores de meio mundo, mais exigentes, transformaram em filme de culto da segunda metade da década de 80, assina um curioso blog sobre o cinema. A avaliar pelo conteúdo do muito material já publicado, DVD Blog, par Bertrand Tavernier, bem merece ser visitado. Lamentável é continuar por editar entre nós muita da sua considerável (e importante) filmografia, como é o caso de Le Juge et L'Assassin(1973), Un Dimanche à Campagne(1984) e sobretudo L'Appat (1995) , nunca estreado em Portugal apesar de ter conquistado o "Urso de Ouro" em Berlin.

Façam o favor de tomar nota: www.sacd.fr/blogs/tavernier.


domingo, março 11, 2007

lembranças do 11 de março 1975

Faz 32 anos que a aventura golpista spinolista permitiu , em meia dúzia de horas, um avanço impensável do PREC. Lembro-me de seguir num carro a grande velocidade para o Ralis menos de uma hora depois do bombardeamento por ar da unidade do Dinis de Almeida. Lembro-me de haver centenas de pessoas à porta de armas a pedir armas enquanto não muito longe dali o Adelino Gomes e um operador de imagem da RTP testemunharem primeiro que todos nós o diálogo verdadeiramente sui generis entre os comandantes das forças atacante e defensiva. Lembro-me de à hora da rendição dos páras o local ser já dominado por militares à civil e civis à militar. Lembro-me ainda da tirada épica da Zita Seabra à saída do carro que a trouxera madrugada dentro da reunião extraordinária do CC do PCP anunciar aos jovens da UEC que aguardavam na sede da Rua Sousa Martins: "Camaradas, Portugal vai para o socialismo!". Também me lembro, e muito gostosamente, dos surpreendentes comunicados do PPD e do CDS saídos nessa mesma noite escreverem preto no branco a palavra socialismo como "objectivo" , salvo é claro pequenas grandes diferenças de método!. Uma autêntica heresia mesclada de oportunismo político meramente táctico dos partidos de direita.
A "salvação da face", recorde-se, deu-se meses mais tarde com a trama de vingança do 25 de Novembro, apresentada como acto de "reposicionamento do espírito de 25 de Abril". Um propósito que, como se viu e se tem visto, funcionou exactamente ao contrário. Apesar, naturalmente, de Soares nos ter martelado incansavelmente (com eficácia) a ideia de se "continuar" a caminhar para "o socialismo em liberdade".

sexta-feira, março 09, 2007

palavras de ruy belo (2)


As velas da memória
Há nos silvos que as manhãs me trazem
chaminés que se desmoronam:
são a infância e a praia os sonhos de partida
Abrir esse portão junto ao vento que a vida
aquém ou além desta me abre?
Em que outro mundo ouvi o rouxinol
tão leve que o voo lhe aumentava as asas?
Onde adiava ele a morte contra os dias
essa primeira morte?
Vinham núpcias sem conto na inconcebível voz
Que plenitude aquela: cantar
como quem não tivesse nenhum pensamento.
Quem me deixou de novo aqui sentado à sombra
deste mês de junho? Como te chamas tu
que me enfunas as velas da memória ventilando: «aquela vez...»?
Quando aonde foi em que país?
Que vento faz quebrar nas costas destes dias
as ondas de uma antiga música que ouvida
obriga a recuar a noite prometida
em círculos quebrados para além das dunas
fazendo regressar rebanhos de alegrias
abrindo em plena tarde um espaço ao amor?
Que morte vem matar a lábil curva da dor?
Que dor me faz doer de não ter mais que morrer?
E ouve-se o silêncio descer pelas vertentes da tarde
chegar à boca da noite e responder
Ruy Belo
Aquele Grande Rio Eufrates

segunda-feira, março 05, 2007

ruy belo e angelopoulos

A noite passada (em casa, como quase sempre) foi profícua em momentos de reentrega cinéfila e literária.
1. Regresso a Theo Angelopoulos, que é só um dos maiores realizadores de sempre da História do Cinema, através do seu penúltimo filme, Eternity and a day (1998) :obra admirável, de rara profundidade filosófica e enorme solidez visual, em redor da viagem de um escritor em busca do tempo perdido e dos momentos que gostaria ter de volta por um dia ou por toda a eternidade. Eleni Karaindrou assina uma contagiante e muito bela banda sonora. A (re)visão de Eternity and a Day deixa-me a sensação, agora mais firme, de que os sinais da devastação ética na Europa (vidé a destruição da Jugoslávia...) não é só uma consequência da intempérie da globalização mas também um sinal de retrocessos, perigosos na maioria dos casos, impensáveis há uma vintena de anos e que nos remetem directamente para a "utopia" de um mundo europeu, o da fraternidade, da igualdade, da solidariedade. Quer dizer: na nossa condição de humanos estamos a perder , cada vez mais, o sentido de Humanidade.
Como foram proféticas as palavras de Sartre sobre o futuro -"Socialismo ou barbárie?".
2. Ruy Belo, o excelente poeta da meditação, de grande poder narrativo, que descobri aos 23 anos, volta nestes dias a apetecer-me. E ainda bem que assim é (como provavelmente diria também o Eduardo Graça!). Reencontrar Ruy Belo é como descer ao mais fundo de nós. É entregarmo-nos a nós próprios, "fugitivos da catástrofe", - belo título do seu último poema publicado em vida ( na Colóquio /Letras, nº42, ) . Leio em Aquele Grande Rio de Eufrates (seu primeiro livro) esta coisa simples mas lapidar: "vem ao meu pátio ver crescer a sombra". Onde podemos enontrar tal força da palavra?.

domingo, março 04, 2007

buñuel e deneuve

Los productores ya la tenían (Catherine Deneuve) programada. Me pareció de un tipo posible para el personaje: muy bella, reservada y extraña. Por eso la acepté.

Luís Buñuel



Quand Buñuel m'a proposé ce rôle. j'ai accepté sans hésiter, mais c'était aussi audacieux pour l'époque. Et un peu risqué pour moi. J'avais 23 ans ; pour tout le monde, j'étais la jeune fille romantique des "Parapluies"... Le film m'a fait basculer dans cette zone indécise où on ne sait jamais si une femme est une vierge ou une putain. Aujourd'hui, des gens me regardent comme s'il y avait encore en moi quelque chose de "Belle de jour". Je précise que je n'en ai absolument aucun regret.
Catherine Deneuve, Télérama (1966)

sábado, março 03, 2007

palavras de ferré (3)

Avec le temps
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie le visage et l'on oublie la voix
Le coeur quand ça bat plus, c'est pas la peine d'aller
Chercher plus loin, faut laisser faire et c'est très bien
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre qu'on adorait, qu'on cherchait sous la pluie
L'autre qu'on devinait au détour d'un regard
Entre les mots, entre les lignes et sous le fard
D'un serment maquillé qui s'en va faire sa nuit
Avec le temps tout s'évanouit
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Mêm' les plus chouett's souv'nirs ça t'a un' de ces gueules
A la Gal'rie j'Farfouille dans les rayons d'la mort
Le samedi soir quand la tendresse s'en va tout' seule
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
L'autre à qui l'on croyait, pour un rhume, pour un rien
L'autre à qui l'on donnait du vent et des bijoux
Pour qui l'on eût vendu son âme pour quelques sous
Devant quoi l'on s'trainait comme trainent les chiens
Avec le temps, va, tout va bien
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
On oublie les passions et l'on oublie les voix
Qui vous disaient tout bas les mots des pauvres gens
Ne rentre pas trop tard, surtout ne prend pas froid
Avec le temps...
Avec le temps, va, tout s'en va
Et l'on se sent blanchi comme un cheval fourbu
Et l'on se sent glacé dans un lit de hasard
Et l'on se sent tout seul peut-être mais peinard
Et l'on se sent floué par les années perdues
Alors vraiment
Avec le temps on n'aime plus.

sexta-feira, março 02, 2007

40º aniversário dos doors

É um facto que os Doors tiveram um forte valor no tempo da minha adolescência. No trajecto da espiral da vida, eles regressam de quando em vez. Para não deixar extinguir o desassossego?
É bem possível que sim... .

viva a desobediência!

Pouco me importam as diferenças ideológicas, religiosas ou políticas que me afastam do ser que foi Aristides de Sousa Mendes se humanamente me sinto, para sempre, irmanado no seu gesto de enorme coragem. Saber dizer"Não!" foi, é, fazer História.

quinta-feira, março 01, 2007

a grande farsa

"Na História, a tragédia regressa muitas vezes mas como farsa". Quem o disse foi Marx, não o Groucho, mas o Karl, evidentemente. Veio-me a frase á ideia porque, nos últimos dias, tenho-me deparado na via pública com as fotografias dos dez mais votados(?) "grandes portugueses" acompanhadas de uma frase onde se propõe ao cidadão que faça a escolha de uma de duas formas possíveis de encarar a personalidade que ama ou odeia. Por exemplo, Álvaro Cunhal é proposto como "solidário ou totalitário ?", Salazar de "ditador ou salvador ?"e Sousa Mendes "consciente ou desobediente?". Os "experts" da campanha, embriagados de saber inventivo, definem-na triunfalmente de "apelativa e divertida". Fortemente impressionado por tamanha sinceridade e simplismo, dou por mim a pensar: como é grande (e estatutário) o poder dos idiotas e de quem lhes franqueia as portas. A tragédia "bufa" soma e segue, para gáudio dos alarves e dos pobres de sentido.

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

uma justa imagem

De que é que se trata? Do lugar, do espaço, onde era improvável alguém (como eu) que escolheu seguir uma ética de verdade aceitasse vergar-se à lógica do despotismo.
A verdade -como dizia Poe- está na consciência.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

o triunfo de scorsese

Surpresa das surpresas: depois de anos e anos de votado a um deselegante "ostracismo", Martin Scorsese -que é só um dos mais proeminentes vultos da História do cinema norte-americano- conquistou o seu primeiro (e merecido) "Oscar" da Academia de Artes e Ciências de Hollywood.

sábado, fevereiro 24, 2007

tinha 17 anos

Foi com Rocco I Suoi Fratelli que cometi a minha primeira transgressão pela causa cinéfila: aceder ao filme mentindo na idade (tinha 17 anos, o filme era para "Adultos") numa sessão do Abc Cineclube realizada numa manhãde domingo, fria, em 1973. Quando o ecrã (do defundo Pathé, o ex-Imperial, sito na zona da Morais Soares) se inundou com o genérico de abertura do filme eu estava longe de imaginar a dimensão do efeito emocional que de mim se apoderou até final. O retrato dessa Italia dividida em dois "países" em confronto, em aculturação recíproca e sem perspectivas de uma superação do futuro, dialécticamente falando, reprresentou a minha primeira grande tomada de consciência política e ideológica. Visconti e a sua estética haviam conseguido o resto: um encantamento (pela universalidade) do cinema que não mais parou.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007

lembrar zeca


A presença das formigas
Nesta oficina caseira
A regra de três composta
Às tantas da madrugada
Maria que eu tanto prezo
E por modéstia me ama
A longa noite de insónia
Às voltas na mesma cama

Liberdade liberdade
Quem disse que era mentira
Quero-te mais do que à morte
Quero-te mais do que à vida



Coro dos Tribunais, álbum editado em Dezembro 1975)
Foto: Associação José Afonso

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

in memorian de allende e neruda

Salvador Allende , Presidente da República de Chile eleito democráticamente (e derrubado através de um "putsch" sangrento -a 11 de Setembro de 1973- orquestrado por Kissinger e executado por Augusto Pinochet) e Pablo Neruda, Premio Nobel da Literatura, (morto dias depois do golpe, já não viu a sua residência ser vandalizada por energúmenos do movimento fascista chileno, "Patria y Libertad"; o seu funeral foi a primeira manifestação (corajosa) contra o esmagamento da democracia pluralista no Chile).
Foto: de Arquivo

no país do faz de conta(1)

O "Sim" à despenalização da interrupção da gravidez até ás dez semanas saiu vitorioso como o temiam muitos dos que pugnaram pelo direito (abstrato) à vida. Como se a vida só merecesse ser defendida no princípio e não lhe deverem ser reconhecidas as condições de qualidade e de dignidade universalmente expressas. O "Não" , ou para ser exacto, uma parcela mais iconoclasta do "Não" preferiu continuar a apostar naquela máxima "ou nós, ou a morte" como o comprovam algumas das mais fantásticas "tiradas" alguma vez lançadas num qualquer outro referendo congénere.
Simone Weill, que era de direita mas não era estúpida, promoveu em França- faz quase trinta anos- uma consulta similar que decorreu de forma apaixonada mas sem necessidade de resvalar para a retórica de sargeta ou cair na patetice larvar: no dizer dos defensores do "Não", e dos peritos na arte de dramatizar, uma vitória do "Sim" traduzir-se-ia num "aterrador aumento de abortos", "num problema de saúde da mulher(!)" ou, pior que isso tudo, "na condenação à morte de inocentes".
Num país estruturalmente atrasado como o é Portugal, com os centros de apoio a menores superlotados (apesar dos muitos esforços de muito poucos, incluindo obviamente de centenas de católicos bem formados), com as instituições (também a romper as costuras) que albergam ad eternum bebés abandonados e orfãos, com a ausência de politica séria e célere no processo de adopção -tudo situações que se vêm agravando nos ultimos 40, 30 anos- não vejo , sinceramente, onde reside a razão (mínima) para tanto ruído de muitos que abraçaram a causa do "Não".
Não seria um bom começo, contribuirem para a resolução das situações gritantes de crianças e jovens que vivem no limbo da sociedade? Não seria curial ajudarem a criar as condições sociais para que o aborto seja senão completamente irradiado pelo menos reduzido à sua expressão mais infíma? Por exemplo, poderiam os do "Não" abandonarem a acção (absolutamente nefasta) que vem promovendo de forma doentia contra a educação sexual nas escolas? Sabendo que uma parte significativa das mulheres que abortam são jovens , muito jovens ... não seria um bom princípio? Bem sei que issso pouco ou nada interessa a muitos que votaram e se bateram pelo "Não", convictos de estarem dentro da razão (a sua) e dela não abdicarem.
Num Mundo que se vem cada vez mais desumanizando, onde cresce o fosso entre os que tem tudo e aqueles que nada tem, um Mundo em que o poder do dinheiro determina já o tempo de vida de muitos, aparecem uns iluminados a colorir a realidade com cores que a esmagadora maioria dos seres humanos nunca verá. É obra!
Não tenho ilusões sobre isso, como em relação a muitas outras coisas. Apenas me pareceu oportuno lembrar que o Mundo é já hoje uma realidade bem diferente daquela que desejaríamos possível ou, paar ser mais claro, de acordo com os nossos interesses egoístas. Mas não: o Mundo de hoje é tão mais cruel do que antes e não se compadece com o "faz de conta" em que chafurdamos ano após ano para nos convencermos (fé inglória!) que tudo vai bem. Quer dizer, tudo vai mal. Bem o sabemos. Mas continuamos a assobiar pró lado. É o que ainda fazemos bem: assobiar como quem "faz de conta"... .A ver se a crise passa e o sol volte a brilhar de novo para todos(?) nós!

terça-feira, fevereiro 20, 2007

a noite do general

foto de arquivo
Noite de 27 Junho 1976. No Pequeno Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, o candidato à Presidência da República, Otelo Saraiva de Carvalho, (apoiado pela esquerda revolucionária)reunido com os orgãos de comunicação social a declarar-se "vencido" mas não convencido. O general Eanes foi o candidato vitorioso (61,6%) mercê do apoio da coligação de interesses -PS, PPD, CDS e MRPP- que viu nele o único garante (possível) para o êxito do processo de normalização político iniciado em 25 de Novembro de 1975.
Atrás de Otelo, o operador de camera, de vinte anos, que empunhava a Bolex Paillard ainda acreditava que a Revolução continuava na ordem do dia e seguia dentro de momentos... .

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

palavras de ramiro correia(2)

aquece as tuas mãos
na cinza do poema
prende os teus cabelos
às estrelas
e morre
ardendo lentamente
deixa o teu corpo
enfeitiçar
o tempo
Na Clivagem do Tempo, edição de autor (1973)

sábado, fevereiro 17, 2007

depuramento e fluidez

Letters from Iwo Jima (2006), de Clint Eastwood
Clint Eastwood não pára de surpreender: não obstante os seus 76 anos de idade mantém bem vivas as suas enormes capacidades criativas e o seu potencial talento. A atestá-lo, aí está Letters from Iwo Jima, que é talvez o mais depurado de todos os seus filmes, a par de uma fluidez narrativa, plena de elegância e eficácia, que permanece surpreendentemente exemplar.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

domingo à tarde

Tenho-me interrogado algumas vezes sobre o significado da amizade e do amor.Dos amigos, não me apetece adiantar muito, todos me são queridos e poucos foram os que traíram, alguns sem o saberem bem porquê. Do amor, -esse risco de ousar ser inteiro todo o tempo mesmo que o medo tome conta de nós e a ternura, os carinhos e os beijos, afrouxem ou desapareçam apenas por umas horas ou mesmo dias- vou descobrindo que sinto a tentação de às vezes o repelir, talvez para melhor me aproximar dele. Para ter mais um pouco de amor. Quer dizer: de vida.

domingo, fevereiro 11, 2007

au hasard, balthazar (2)

«Je vous invente tel que vous êtes»
Robert Bresson / Notes sur le cinématographe

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

au hasard, balthazar

"Bresson explore un même motif : l’innocence et le mal, la pureté et ce qui la dégrade."
Encyclopédie Universalis

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

anne wiazemsky

Anne Wiazemsky, a actriz fétiche dos cineastas do cinema de autor, como Bresson, Godard, Garrel e Pasolini apresenta-se numa entrevista bastante interessante por sinal, publicada no último número da Les Inrockuptibles. É notório o peso de Bresson reflectido anos, muitos anos mais tarde na sua primeira obra escrita; o casamento com Godard (criticado por Bresson nestes termos: 'Mais Anne, vous faites une folie , il est trop vieux!'); a atracção pela personalidade de Pasolini; as experiências godardianas radicais, sobretudo La Chinoise.
Anne Wiazemsky foi um dos meus amores secretos durante uma boa parte da adolescência e da idade adulta. Essa "fixação" em Anne obrigava-me a ver Au Hasard Balthazar, Teorema de Pasolini, Rendez-Vous, (de Téchinè) vezes sem conta. Uma atracção desmedida, confesso-o. Porque nunca me permitiu sair desse impasse, dessa impossibilidade, de a ter no ecrã e de a desejar a meu lado.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

pelo "sim", contra a hipocrisia

O referendo pela despenalização do aborto às dez semanas é pau para toda a obra dos que defendem o "não"até às ultimas consequências: bebés boneco made in china do tamanho de um isqueiro passam de mão em mão como que a alertar para o "crime hediondo" que livremente se praticaria aos "milhares"(sic) se o "sim" vencesse; a igreja (alguma da Igreja...precisemos) ensaia nas homilias a excomunhão violenta, ao estilo medieval ,das pecadoras sedentas de matar a vida no ventre, enquanto catequistas febris distribuem nos infantários e nas ruas cartinhas de supostas crianças a quem as mães não mataram a vida e que por isso estão agradecidas(!); um inventivo ex-ministro da segurança e do emprego propõe a condenação das mulheres a uma pena de serviço na comunidade como se fossem jovens delinquentes. Há ainda os moderados que defendem um castigo simbólico das mulheres que abortem, contra a própria lei que deixa de ser lei!.
Todos no "não" pugnam pela vida, a vida acima de tudo! Só estranho, e muito, que a coerência desses princípios não inclua as pilulas contraceptivas e não proponham -por mera razão de coerência- a sua proibição imediata e a aplicação de castigos a quem prevaricar, -como é?
Conclusão: De vez em quando o país vira uma enorme tenda de circo e o espectáculo é sempre o mesmo: disfuncional, demencial e histérico quanto baste, para manter as bancadas em gargalhada e na ilusão de estar a gozar de felicidade.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007

palavras de faulkner

Some things you must always be unable to bear. Some things you must never stop refusing to bear. Injustice and outrage and dishonor and shame. No matter how young you are or how old you have got. Not for kudos and not for cash, your picture in the paper nor money in the bank, neither. Just refuse to bear them
William Faulkner

terça-feira, janeiro 09, 2007

ícones

Andrei Rubliov (1966), de Andrei Tarkovski
(André Rubliev)
Porque
o vento cobre de imagens os tellhados.
O tempo das colheitas
já passou, vem a morte, André Roubliev,
mordendo os cataventos, espera-nos
um cavalo
tão fertil como a chuva sobre os ícones.

Gil Nozes de Carvalho,
in O Bosque Sagrado, Gota de Água (1986)

"paredes frias": voz off dum filme perdido

Stalker, de Andrei Tarkovski
Às vezes, dou por mim a imaginar-me viver perto da infância, tendo por companheiros os meus amigos mais chegados. Às vezes a companhia é a solidão, outras a fala das imagens que eu quando jovem e adolescente juntava depois de sair do cinema num fim de tarde de verão.
Às vezes, só ás vezes, vejo-me de olhos fechados, corpo adolescente, a imaginar a eternidade do momento, de todos os momentos e de todas as recordações, passadas num tempo que parecia límpido, tão inesperadamente límpido que nunca será inalienável. Nunca.
Outras vezes, sonho que todas as paixões mesmo as paixões mais absurdas vem de novo ter comigo e eu guardo-as apesar de tudo, apesar sobretudo da vida ser-nos reduzida.
Às vezes, às vezes, um gesto e olhar doce como no antigamente servem para varrer os axiomas da vida, descolar do desânimo e desviar do desespero. Nunca hão-de compreender aqueles, nem ou outros, que nunca ousaram o atrevimento de ser inteiros e únicos. Como diria o Fernando Pessoa.
Às vezes imagino que nunca vou me cansar de voltar a sentir tudo como se fora a primeira vez.

segunda-feira, janeiro 08, 2007

iniciação

Foi com Noronha da Costa que aprendi o sentido da pintura.
Devo, em parte, essa descoberta ao Zé Miguel Figueiredo -amigo da adolescência com quem partilhei a paixão pelo cinema e a fotografia- que, em 1972, no dia de anos do pai (que saudades, Vitor Figueiredo!) me convidou a ir lá a casa. Logo à entrada, dei por mim siderado frente ao branco imaculado das paredes da sala a deslumbrar-me com "um" N.da Costa colocado acima do maple... . Um deslumbramento que me ficou na retina. Para todo o sempre.

sábado, janeiro 06, 2007

náusea

A condenação à morte de Saddam Hussein, a farsa judicial que o antecedeu e a divulgação de imagens da execução "em directo" por enforcamento, apenas servem para sublimar a grandiosidade do desastre da aventura imperialista no Iraque e permitir aos escribas de serviço arrotarem uma catadupa de idiotices e lugares comuns que tresandam a hipocrisia da mais rasteira.
Se Saddam mereceu a pena capital pelo massacre de 148 xiitas, ocorrida nos anos 80, então o que merecem Bush, Chenney e Rumsfeld pelas vidas de centenas de iraquianos massacrados desde o inicio da agressão militar?.Isto para já não falar do campo dos horrores que (comprovadamente) foi (é?) Abu Ghraib ou na paradisíaca estância de Guantánamo, que faria as delícias das SS e do seu líder, Adolf Hitler.
Há dias, o Manuel António Pina (uma das raras excepções a opinar fora da rota da pantominice instalada...) escrevia no JN esta coisa simples mas lapidar : "são sempre criminosos que julgam outros criminosos". Nem mais!

quinta-feira, janeiro 04, 2007

vulnerabilidades do sistema

Finalmente, on line! Privado (desde o penúltimo dia do ano passado) de sinal do servidor fui-me -mesmo que não por decisão própria- habituando à condição momentânea de "incomunicável". Uma excepção, não a regra -evidentemente.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

memória do tempo

Na noite de consoada a saudade veio de mansinho instalar-se no meu pensamento. E encontrei-me só, perdido em noites de leitura na minha velha cama de menino. Eram as aventuras do major alvega de princípe valente e do tarzan. A escutar o último autocarro a subir em esforço a avenida. Irado vou para a janela e fumo mais um cigarro. Engulo o fumo e depois faço-o sair em circunsferências nem sempre perfeitas. Olho a paisagem de carroos dormentes na praceta mal iluminada. Mesmo que não o deseje tenho de enfrentar a saudade. Que poderei eu fazer senão guardar-te na retina. Encontrar-nos-emos na morte, esse lugar cheio do tudo acabado. Que falta que tu me fazes, Mãe.

quarta-feira, dezembro 27, 2006

quarto dos brinquedos

Aconteceu-me a meio da tarde ser sequestrado pelos jovens sobrinhos no quarto de brincar e ser obrigado a ler a história da Anita e os fantasmas com interrupções pelo meio de um que queria pôr-se às cavalitas e outro que desejava exercitar os seus dotes de kung-fu entre gritos de guerreiros e risos incontidos. Às tantas, os miúdos desligaram a luz , ligaram o leitor de cd's e forçaram-me a acompanhá-los ao ritmo do hip-hop. Foi pena, o sequestro ter durado pouco tempo. Sequestro como este deixam a memória com um manancial de lembranças.

domingo, dezembro 24, 2006

imagine...



(by John Lennon)
Imagine there's no heaven
It's easy if you try
Nowhere below us
Above only sky
Imagine all the people
Living for today...
Imagine there's no countries
It isn't hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people
Living life in peace...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one
Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people
Sharing all the world...
You may say I'm a dreamer
But I'm not the only one
I hope someday you'll join us
And the world will be as one

sábado, dezembro 23, 2006

o natal na clandestinidade?

It's a Wonderful Life (1946), de Frank Capra
Nas últimas semanas os meios de comunicação (pelo menos, a escrita) vem repetindo as mesmas palavras, os mesmos "recados", sobre a nova ideia, absurda e perigosa, noticiada no diário britânico The Guardian relativa a uma alegada campanha de católicos e da direita, súbditos de Sua Majestade, a favor do "fim da celebração do Natal"(!). Não o fim em si mesmo mas um fim na sua "exposição" pública, sob o pretexto de "não ofender"(!) ritos de outras religiões. Quer dizer: celebrar a festa católica do Natal sim, mas o mais discretamente possível!. De preferência na clandestinidade!
Num mundo marcado cada vez mais pela ausência total de perspectivas o objectivos sociais e políticos uma proposta deste calibre -diga-se, surpreendentemente urdida- serve antes de mais para caracterizar a mentalidade actual de certos poderes em se disporem a "reeducar" as massas sobre aquilo que é ou não "conveniente" e "políticamente correcto".
Só pode tratar-se de uma ficção com propósitos publicitários à escala mundial,da consequência do estado de demência avançada de quem se lembrou duma atordoada destas ou, na pior das hipóteses, da primeira grande estocada de um qualquer lobbie islâmico a dominar as sociedades ocidentais, sem dispararem um único tiro ou deflagarem bombas.
A paranóia está instalada e tem já seguidores zelosos -na Grã-Bretanha, Espanha, Estados Unidos- que mandaram suprimir referências ao Natal nos cartões da época; em escolas (Saragoça) e até em aeroportos estadounidenses de onde terão sido mandadas retirar as tradicionais árvores de natal!.
Lembro-me, que de outra vez ( aquando da morte do capitalismo de Estado a Leste) falou-se em "fim da História". Viu-se aonde queriam chegar de facto os novos ideolólogos da capitalismo neoliberal com tamanho disparate.


quarta-feira, dezembro 20, 2006

ofícios

Every single empire in its official discourse has said that it is not like all the others, that its circumstances are special, that it has a mission to enlighten, civilize, bring order and democracy, and that it uses force only as a last resort. And, sadder still, there always is a chorus of willing intellectuals to say calming words about benign or altruistic empires.

Edward W. Said - "Orientalism 25 Years Later," Counterpunch.org website, 4 August 2003.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

reflexão nocturna

Fui sempre um leitor sôfrego, mesmo que agora não o seja tanto quanto desejaria.
Tenho-me interrogado, desde a morte de minha mãe, sobre o que teria mudado na minha vida de adulto se tivesse nos últimos trinta anos sido capaz de manter a mesma relação que até á adolescência mantive com os livros. Não apenas porque a leitura me criou a obrigação desde cedo (necessária) ao acto da própria escrita mas porque eu era uma pessoa que havia descoberto na literatura uma forma perfeita de lidar com a minha ligação com o mundo e outra data de coisas que me assaltavam a consciência.
Nunca fui capaz de entender a literatura como um mero entretém ou outro disparate qualquer. Alguns dos livros que li quando adolescente mudaram o rumo da minha vida outros foram um completo embuste. Em certo momento, aconteceu que os livros tomaram conta de mim e eu correspondi-lhes com espírito "de missão". Deixei que os livros (alguns dos livros) entrassem na minha vida interior com glória.
Os livros que eu nunca mais quis (re)ler esqueci-os por completo. Como acontece(u) com alguns amigos que, afinal, não eram nem nunca foram amigos porque foram incapazes de manter a relação em momentos agudos da vida. Provavelmente por medo.

domingo, dezembro 17, 2006

in memoriam de Lopes Graça

A 25 de Abril de 1974, eramos jovens e inocentes, -nem tanto.
Viviamos sob o signo da utopia, do mundo novo que "estava ali" ao virar da esquina, julgavamos nós. Reuniamo-nos nos cafés da zona da Avenida de Roma (o Trevi, a Madrid) para falar dos ideólogos da nova esquerda, do marxismo, do leninismo,do último Godard, da revolução russa, de Stalin (que gerava entre nós muito prurido), de Guevara e Fidel, do Até Amanhã, Camaradas, (que todos sabíamos ser escrito pelo Álvaro), de Lukacs, dos eurocomunistas Carrilho e Berlingueri e do "puro e duro", Lister, dos filmes de Eisenstein, de Vertov e de Poudovkine, da Revolução Francesa, do Irish Republican Army, da Fatah, da contestação à guerra do Vietname de Praga 67, da Insurreição de Budapeste em 56, da Ofensiva de Tet e do exímio general vietnamita,Giap; dos "meetings" no ISE ou em Medicina, das cargas da polícia de choque comandadas pelo capitão Maltês ou pelo Capitão Pereira (que me deu voz de prisão duas vezes em 1973), da Declaração de Independência da Guiné-Bissau transmitida pela rádio Portugal Livre, etc, etc, etc. .
Mas o único motivo de satisfação (ia a escrever , enorme) que nós poderíamos ter vivido estava programado para uma noite memorável de Junho no Coliseu de Lisboa: as canções heróicas de Fernando Lopes Graça.
Lembro-me, perfeitamente, de a sala do Coliseu dos Recreios parecer vir abaixo com a implosão de milhares de vozes em uníssomo: "Vozes ao alto, vozes ao alto /unidos como os dedos da mãos / Havemos de chegar ao fim da noite / Ao som desta canção". Era uma festa, mas uma festa de combate. Em torno de muitas coisas, penso eu.
Lembro-me a propósito das pessoas mais velhas com lágrimas nos olhos darem as mãos às pessoas mais jovens e da fraternidade tomar conta da sala a noite inteira.
O Lopes Graça deixou-nos a todos nessa noite de 74 uma memória e uma lembrança: nunca renunciaremos ao sonho!

sábado, dezembro 16, 2006

elegia de ernesto sampaio

Às voltas com textos do Ernesto Sampaio e a releitura (do seu) "Ideias Lebres", veio parar-me às mãos um depoimento magnificamente sentido de Mário Cesariny, publicado no Público a 7 de Dezembro de 2001, dias depois da morte de Ernesto, a que não resisto partilhar:
"Ernesto Sampaio tinha a grande rebeldia e a grande inteligência. dentro do grupo surrealista, era dos mais lúcidos, dos que mais sabiam, dos mais rebeldes. Um sentido de humor formidável, uma agudeza de espírito extraordinária, amabilíssimo. Era uma figura muito rara, de saber e dedicação. Uma figura grande. Desde a morte de Fernanda Alves, já não sabia viver. É a única pessoa que conheço que morreu de amor".

sexta-feira, dezembro 15, 2006

os dias imensos

copyright by FotoAçor

Na abertura oficial do 1º Festival Internacional de Cinema de Angra do Heroísmo, em Novembro de 2002, Leonel Vieira e Karra Elejalde (actor e realizador espanhol) apresentaram ao público da Terceira, que quase esgotou o Teatro Angrense, a mui aguardada produção de "A Selva", adaptação da obra de Ferreira de Castro realizada com apurado sentido criativo e de representação. Reexibido duas vezes durante o Festival, -para os estudantes do secundário e público ansioso- "A Selva" foi também responsável por um convívio inesquecível entre técnicos, produtores, actores, realizadores, organizadores ejornalistas como raras vezes me foi dado sentir em outras manifestações congéneres.

terça-feira, dezembro 12, 2006

a hora de bertolucci

Não será, por certo, o melhor filme de Bertolucci mas é com toda a certeza um dos seus mais lapidares, estreado em Portugal depois da queda da ditadura. No meio de tanto lixo e vulgaridade massificada, não seria má ideia sugerir ao Paulo Trancoso uma edição pack, no mínimo de quatro títulos (o inédito, La commare Secca, Prima Della Rivoluzione, Strategia del Ragno e o ora lembrado Il Conformista), tudo obras-surpresa dos primeiros anos de carreira de Bernardo Bertolucci
No deserto em que se transformou a edição DVD neste país, a Costa do Castelo é a unica réstea de luz que, desde há anos, resiste e nos tem dado a (re)ver uma parte importante da memória do cinema. A Costa do Castelo (a "nossa"pequena Criterium!) é um caso singular de sucesso que merece ser apoiado. Paulo, te(re)mos Bertolucci em 2007 ?!

domingo, dezembro 10, 2006

lei da vida para pinochet

(Foto: Pinochet parece explicar ao Papa, João Paulo II que o visitou em 1987, como se resolve os problemas "em casa")
A lei da vida -a única que pelos vistos foi possível aplicar-lhe- colocou um ponto final na existência de Augusto Pinochet, o todo poderoso ditador que em 11 de Setembro de 1973, apoiado por Kissinger, CIA e uma vintena de Transnacionais norte-americanas, usurpou pela força das armas o poder legítimo do governo de Unidade Popular e assassinou o seu presidente,
- o socialista, não marxista, lembremo-lo- Salvador Allende.
Pinochet, que mandou assassinar centenas de opositores das mais variadas tendências políticas (comunistas , socialistas, sociais-democratas, radicais de esquerda e até democratas-cristão), foi o autor moral dos atentados (à bomba) contra o general constitucionalista, Pratts, em Buenos Aires, em 1974 e de Orlando Lettelier em Washington, foi o patrono da célebre Operação Condor que uniu todos os ditadores de então no poder da América Latina para uma guerra de terror e extermínio contra milhares de opositores "subversivos".
Pinochet é também o rosto do ódio à cultura e inteligência qaundo ordena a queima pública de livros, de bibliotecas inteiras, (inspiração germânica nazi) nas ruas de Santiago ordem cumprida pela soldadesca nos dias imediatos ao "putsch".
Foi com Allende que o Chile viu renascer a esperança de um novo mundo. Infelizmente, o país era (é ) demasiado rico em recursos para que a voracidade do imperialismo norte-americano permitisse veleidades como as privatizações do aço, do cobre, do salitre; nem sequer a consolidação de um regime democrático de inspiração social-democrata europeia (nórdica) era tolerável.
Nação com grandes tradições democráticas o Chile tem a sua História repleta de contra-revoluções e golpes sangrentos onde o poder da oligarquia se manteve sempre á tona de água.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

automatismo

Singing in the Rain (1952), de Stanley Donen

Na brisa fria da tarde de final de Novembro lá vai ele, todo aperaltado de camisa branca desabotoada para se lhe ver os cabelos cinzentos do peito, calça de coutlé azul escuro e o velho blusão de pele castanho coçado. Lá vai ele, rua abaixo a vociferar impropérios do mais vernáculo dirigidos na aparência contra tudo e todos que passam mas, de facto, a nenhum alvo em particular. Lá vai ele, de cabeleira prateada desgrenhada a sorrir no intervalo breve de um palavrão soft ("os caras de cu estão a olhar, nunca viram?!! Sou igual a vocês, caras de cú!") indiferente á chuva que cai de forma impiedosa sobre todos mas não se importa.
Até entrar no único café aberto (repleto de senhoras e meninos presos pela mão vagamente assustados a verem a cortina de chuva intensa através da vidraça da montra) do largo atravancado de carros a apitarcom os limpa pára-brisas em frenético movimento, o Senhor Paulo do alto dos seus quase 63 anos, entra triunfalmente no café com o cumprimento usual, "boa noite, meus queridos mortais!" e põe quase toda agente de semblante carregado enquanto outros, poucos, lhe respondem com um sorriso e uns, mas afoitos, lhe respondem "os que vão morrer como tu também te desejam boa noite". O empregado, de cara de bebé, sorridente traz uma imperial que coloca à frente do Paulo ocupado na tentativa de acender um cigarro molhado que traz pendurado no canto da boca. Alguém lhe oferece um marlboro, ele agradece mas recusa, "prefiro um Camel molhadinho a essa coisa sem paladar" diz ao mesmo tempo que dá um gole na cerveja e solta um "Ah!". De súbito, o Paulo lá consegue acender o cigarro e logo de seguida ouve-se uma salva de palmas, vinda de uma mesa ocupada por três convivas deliciados a juntar copos de canecas no canto junto á parede. O Paulo , ergue o copo e agradece-lhes visivelmente satisfeito "este que vai morrer vos saúda!".
Saio do café com vontade de voltar a entrar, pagar um copo ao Paulo e passar com ele uma hora na conversa. Mas não acho que deva de o fazer para já. Mas adivinho o que vai na alma do Paulo.Para mais, o olhar esmagado de solidão, sem tristeza à vista, que ele mostra sem disfarce nem vergonha fez-me pensar na grandeza dos seus modos desprendidos de medo.
O Paulo vive em estado de ousadia permanente na cidade branca, bela como diz é certo, mas quase morta pelos crimes diários contra ela, pelo ostracismo a que é votada.
Dias depois, o Paulo salta-me ao caminho e atira-me um desafio irrecusável, "paga-me um copo!".Sentados a uma mesinha do british bar junto à montra, Paulo confidencia-me, "Já ninguém se indigna. A rua onde nasci (em Alcântara) está irreconhecível, diz em tom resignado mas não convencido. "As pessoas querem lá saber da felicidade de Lisboa, querem é continuar a esbanjar, esbanjar , esbanjar dinheiro para ver se encontram, a felicidade delas, mas não encontram a felicidade só a ilusão da mesma.
Nunca vão sentir o mesmo amor que sinto por Lisboa, nunca".
À saída, dou por mim a fixar o ar compenetrado do Paulo a olhar deliciado a chuva que caía forte e feio e na paisagem da praça repleta de automobilistas ansiosos a apitar. Chovia, chovia e o Paulo observava como se estivesse a ouvir uma dissertação filosófica interessante. O olhar de Paulo era o de um perturbado deslumbrado. Provavelmente, não tanto pela chuva mas mais pelo poder que ela tinha no momento de tudo perturbar num ápice.
Foi assim que vi pela última vez o Paulo, o Senhor 63 anos que um dia vindo do jornal Século deu em casa com o corpo da mulher caído de bruços na cozinha e nessa noite se pôs á janela a cantar "Ir e vir e ir, ao mar"do grupo Vozes na Luta. Para espanto do vizinhos , do médico legista, dos agentes da psp, dos bombeiros e do bairro inteiro.
Onde quer que estejas Paulo, fica bem!

Lisboa, Jardim do Principe Real, Setembro 2006

quinta-feira, dezembro 07, 2006

desaire imperial

The Roman Empire is falling. That, in a phrase, is what the Baker report says. The legions cannot impose their rule on Mesopotamia.
Just as Crassus lost his legions' banners in the deserts of Syria-Iraq, so has George W Bush. There is no Mark Antony to retrieve the honour of the empire. The policy "is not working". "Collapse" and "catastrophe" - words heard in the Roman senate many a time - were embedded in the text of the Baker report. Et tu, James?
This is also the language of the Arab world, always waiting for the collapse of empire, for the destruction of the safe Western world which has provided it with money, weapons, political support. First, the Arabs trusted the British Empire and Winston Churchill, and then they trusted the American Empire and Franklin Delano Roosevelt and the Truman and Eisenhower administrations and all the other men who would give guns to the Israelis and billions to the Arabs - Nixon, Carter, Clinton, Bush...
Robert Fisk, The Independent -7 Dec. 2006

terça-feira, dezembro 05, 2006

check-up

No Jornal de Notícias de ontem, Paulo Morais, incómodo como sempre, punha uma vez mais o dedo na ferida do mal (ancestral) deste país:
"Vivemos tempos muito semelhantes aos que Portugal era antes do 25 de Abril, com corporações dominantes de todo o sistema. (...) O espírito de Salazar mantém-se e todo um conjunto de salazaretes de segunda que andam por aí a dominar o sistema fazem com que estejamos quase irremediavelmente afastados do desenvolvimento.... ."
Explicar aquilo que todos já sabem há muito mas andam a fazer de conta que não. No fundo, limitam-se a cumprir o "regulamento" do costume.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

sessão especial

O grande mérito da (única) homenagem pública a Beatriz Costa, anos antes da sua morte, talvez tenha sido apenas isto: uma livraria/galeria de renome (a Barata) resolveu juntar na grande sala do Londres (antes da remodelação, anos depois, ditada pela crise), uma pequena multidão de cerca 200 pessoas para ovacionar a popular e talentosa actriz e delirar, pela enésima vez, com o adocicado, "A Canção de Lisboa"(obrigado Luís de Pina!). A somar ao prazer de apreciar também ao vivo o (bom) humor de Beatriz Costa, foi um memorável fim de tarde de verão, de Junho de 1992.
(Foto de Fernando Correia. Ladeando Beatriz Costa, o casal Barata, Zélia e António).

domingo, dezembro 03, 2006

fracasso e fraude

Ao grande fiasco iraquiano vem, célere, juntar-se um outro -o do Afeganistão. É escusado fazer uso da fidelidade canina para mascarar a realidade do quotidiano afegão, é escusado. Basta recordar as palavras "proféticas" do fantasioso secretário de Estado da Defesa estadounidense, Donald Rumsfeld, em Agosto de 2002, proclamando uma nova era para o povo afegão: "a breathtaking accomplishment" e, delirando, "a successful model of what could happen to Iraq".
Quatro anos depois da invasão e ocupação do Afeganistão, os EUA, apoiados pela Nato, ganharam a batalha por Cabul mas perderam a guerra. Nem é preciso procurar muito na imprensa internacional para perceber que a aventura imperial no Afeganistão vai ter o fim que outras tiveram no passado. Além de que, a tão propagandeada "democratização pacífica" e "reconstrução afegã" salda-se à data num surpreendente fracasso, uma enorme fraude, que já vem provocando danos na "coligação".
Os biliões de dólares escoados por dezenas de países dadores e destinados à eufemística "reconstrução" e "ajuda internacional" são, segundo fontes oficiais, desviados na sua maioria pela "corrupção afegã". Mas na verdade o que acontece é que muitos desses fundos tem servido , segundo fontes de Ong's e da ONU, para construir embaixadas, universidades (americanas!), autoestradas (a preços "singelos" de 250.000 dólares o km ou, na pior da hipóteses, a 700.000 dolares cada km se o trabalho cair "nas mãos" do Louis Berger Group, empresa conhecida por ter recebido 665 milhões de dólares para construir... escolas). Um lógica simplex, cínicamente falando.
Recentemente, os EUA impuseram ao governo afegão a obrigatoridade de pagamento de taxa de 20 dolares mensais a todos os automobilistas afegãos. Com essa medida, os norte-americanos pensam reunir mais 30 milhões de doláres que funcionarão como "contributo dos Estados Unidos para a assistência social"(!).
E não deixa de ser sintomático que Cabul continue a ser uma cidade destruída, (destruída também pela mentira) repleta de tendas onde se albergam familias inteiras na maioria desempregados. Cabul, transformada na cidade das mulheres perdidas na prostituição e das crianças raptadas e escravizadas ou assassinadas por traficantes de orgãos.
O Afeganistão quatro anos depois da ilusória vitória é cada vez mais um campo de batalha, como o comprovam a subida em flecha dos ataques da resistência, cada vez mais organizada, dos talibãs e de outros que selhes juntaram.
Com o cultivo do ópio a chegar aos 59% pode dizer-se que os EUA ganharam o Afeganistão. O problema é saber "até quando?".

sábado, dezembro 02, 2006

filme de culto

La Jetée (1962), de Chris Marker

Je pense à un monde où chaque mémoire
pourrait créer sa propre légende.
Chris Marker

sexta-feira, dezembro 01, 2006

o poder, todos os poderes

Há dias, o canal Hollywood reservou-me outra agradável surpresa: a exibição de Fahrenheit 451 (Grau de Destruição), de François Truffaut. Trata-se, como está bem de ver, de uma adaptação do célebre romance homónimo de Ray Bradbury em que o tema da sociedade totalitária e da escravização da condição humana -numa clara alusão ao nazismo- é abordado de forma notável.
Visto hoje, Fahrenheit 451 (a temperatura a que arde o papel...) talvez incomode um pouco mais pela sua explícita denúncia do poder, de todos os poderes que , regra geral, controlam, vigiam e oprimem.
Mais do que um apelo (radical) à liberdade, a todas as liberdades o filme, tal como no romance, faz o elogio da resistência a favor da causa da dignidade do homem, de todos os homens, contra todas as formas de opressão, pela defesa da criação literária e artística, contra a manipulação de consciências e a conspiração do poder ideológico dominante, a favor da preservação da memória civilizacional. Em suma, tomar a defesa da liberdade como um bem essencial.
Nos tempos que correm, um filme/livro como Fahrenheit 451 será tão mais esclarecedor quanto nós assim o desejarmos. Para nos mantermos em estado de alerta, evidentemente.

imagem de um festróia

(Foto: Fernando Correia/DN)

Basta olhar a expressão, no mínimo interessante(!), de Mickaela Kaiser, produtora austríaca de Die Papierene Brucke ( A Ponte de Papel) para se perceber o burburinho que esta imagem gerou em algum do staff e entre os convidados do III Festival Internacional de Cinema de Tróia (1987). Como se vê, a atenção nas explicações de Mikaela foi agudíssima.

quinta-feira, novembro 30, 2006

o "espírito" de langlois

Na programação da Cinemateca Portuguesa -sempre meritória, como vem sendo hábito- que se anuncia para o último mês do ano, figura a projecção, em sessões contínuas diárias (com entrada livre), de Le Fantôme d'Henri Langlois,interessantissíma longa-metragem documental assinada por Jacques Richard e produzida em 2004, sobre a vida e obra do pioneiro dos arquivos das chamadas imagens em movimento.
Sabendo, como se sabe, que a Henri Langlois (1914-1977) se ficou dever não apenas a criação, em 1936, da Cinémathèque Française, mas todo um trabalho arduo de enorme rigor realizado com entusiasmo durante décadas a fio, que não se circunscreveu aos domínios da aquisição, preservação e restauração mas que superou as expectativas mesmo na vertente da divulgação como o comprovam as dezenas de intervenções públicas em defesa, designadamente, da "nouvelle vague" e do cinema de autor na generalidade, seria imperdoável deixar passar em claro este curioso filme que reune material de arquivo e depoimentos de consagrados realizadores como Godard, Nick Ray, Hitchcock, Franju ou Raoul Walsh.
Pena é que o documentário inglês datado de 1970 ,"Henri Langlois", da dupla Roberto Guerra e Elia Hershon, rodado com Langlois vivo não tenha vindo complementar o do realizador gaulês.

segunda-feira, novembro 27, 2006

pequenez...periférica

No ano em que se assinala os quatrocentos anos do nascimento do pintor e gravador Rembrandt , uma pequena distribuidora francesa de cinema alternativo de nome E.D. Distribution -celebrizada em França pela difusão da obra dos irmãos Quay e de Guy Maddin, entre outros- repõe por estes dias numa vintena de salas gaulesas, uma pequena pérola do cinema holandês completamente desconhecido entre nós: Rembrandt fécit 1669, de Jos Stelling. Porque se trata, desde logo, de um excelente e surpreendente filme tanto em termos artísticos como de concepção, espanta-me a contínua ausência de "imaginação" da distribuição cinematográfica portuguesa na forma como se revela (persistentemente!) incapaz em alargar, de uma vez por todas, os seus horizontes.
Com os apoios comunitários (que subsistem) para a promoção e difusão das cinematografias europeias não há razões que justifiquem a estúpida teimosia em ausentar dos ecrãs nacionais a produção de dezenas de filmes húngaros, belgas, holandeses, polacos, dinamarqueses, suecos, finlandeses, romenos... etc, etc. Há algo de suicidário nesta visão redutora do mundo e daquilo que ele tem para nos oferecer. Há e é muito, muitíssimo, para a nossa cada vez mais comprovada pequenez.

domingo, novembro 26, 2006

cesariny (1923-2006)


Rebastecimento
Vamos ver o povo
Que lindo é
Vamos ver o povo.
Dá cá o pé.

Vamos ver o povo.
Hop-lá!
Vamos ver o povo.

Já está.
Mário Cesariny
in nobilíssima visão, Assírio & Alvim , Outubro 1991

sábado, novembro 25, 2006

"profecias" de ernesto sampaio

Ernesto Sampaio e Fernanda Alves,
já desaparecidos
O Ernesto Sampaio (que conheci num dia longínquo de 1976...), jornalista, encenador teatral, foi sobretudo um dos grandes teóricos do surrealismo. Homem de cultura vastíssima o Ernesto foi um pensador exímio com uma capacidade de análise invulgar. O texto (extractos) que abaixo se segue , escrito no alvorecer do cavaquismo, põe a nú com grande lucidez o "futuro" que aí vinha ...e que estamos vivendo exactamente como ele o previu.
Um grande abraço, Ernesto!
Uma sociedade sem conflitos só pode ser uma sociedade totalitária, e já não restam dúvidas de que a utopia capitalista abre caminho a uma implacável ditadura: a do mercado. O que está em jogo é o fim de um período do capitalismo ligado de certo modo à emergência de uma sociedade pluralista. A gigantesca redistribuição dos mercados mundiais que hoje se entregam os colossos do capital financeiro, a concentração em poucas mãos de qauntidades de dinheiro astronómicas, significam o dobre de finados do pluralismo sob todas as suas formas.
Entretanto , instituições e aparelhos ideológicos (privados ou do Estado) funcionam essencialmente como máquinas de embrutecer, o ensino é medíocre e não tem qualquer finalidade humanista, a cretinice é a norma dos programas de rádio e televisão, a imprensa pratica sistemaáticamente o elctrochoque afectivo (dramatizaçãoi de acontecimentos ínfimos para ocultar os que são realmente importantes), o obscurantismo, sob todas as suas formas, está na ordem do dia, os conceitos mais vis e reaccionários beneficiam de uma publicidade espaventosa, os poderes montam disposistivos sofisticados para privar os cidadãos de qualquer hipótese de reflexão e acção.
Impotente perante este sistema (a que se submete cegamente) , o cidadão nunca se interroga sobre o que deve fazer (tem, aliás, a sensação de que não pode fazer nada), limitando-se a pensar co inquietação no que lhe virá a acontecer.
Viver atolado na merda até ao pescoço não o preocupa demasiado, quando outras ameaças mais concretas se perfilam no horizonte, como perder o emprego, por exemplo. Sem nenhuma influência influência no destino da colectividade nem no seu destino próprio, o individuo vê-se reduzido a esperar que a sorte lhe sorria, isto é, que não lhe batam muito... .
Ernesto Sampaio
in Diário de Lisboa 19 Junho 1987

quarta-feira, novembro 22, 2006

d.maria II, teatro aberto

foto: Teatro D. Maria

No "Público" de ontem (3ªfeira), Eduardo Prado Coelho faz o elogio da programação do Teatro Nacional D. Maria. Por uma questão, diz o cronista, "de honestidade intelectual a que sou extremamente sensível". Seguem-se elogios às "iniciativas que estão em curso" que considera serem "bastante positivas"... .

Ainda que os seus gostos não permitam encaixar tudo aquilo que foi enunciado pela director Carlos Fragateiro, tão contestado na altura da nomeação, o certo é que EPC considera existirem iniciativas de "inegável valor" que denotam "uma dimensão cosmopolita" muito "interessante e benéfica". Os elogios estendem-se à Livraria (gerida pelo teatro) e à criação da esplanada voltada para a Praça do Rossio.

O "deslumbramento" de EPC é sério, não tenhamos dúvidas, e também sensível. Depois do "coro de protestos" chega a hora da bonança. Mesmo quando elogia o trabalho desenvolvido pelo anterior director, António Lagarto, como "exemplar" - e crítica o modo como este foi afastado, "sem razões claras"- EPC não deixa de ser coerente porque tem a noção do valor dos dois protagonistas, Lagarto e Fragateiro. Mas, convenhamos, com uma ligeira diferença de "estilos": um fechou o espaço onde se mantinha a funcionar uma livraria (presumo que da Assírio & Alvim), o outro (re)abriu-a e deu-lhe atributos de serviço público.
Não será coisa muito relevante, pois não, nem de todo exemplar mas , em rigor, faz (toda) a diferença na gestão criativa dos espaços e na ideia de gerir um teatro como o nacional. Uma diferença que dá prazer a quem lá vai e se deixa "envolver", como de resto acontece com EPC. No fundo, um teatro pode e deve ser um espaço culturalmente mais aberto.


terça-feira, novembro 21, 2006

"heresias" buñuelianas

El joven monje: Hay algo que me turba.
El inquisidor: Os escucho... .
El joven monje: Me pregunto si quemar a los herejes no es ir contra la voluntad del Espíritu Santo.
El inquisidor (algo sorprendido): Pero si es la justicia de los hombres quien les castiga.!Es el brazo secular! Los herejes no son castigados por ser herejes, sino por las sediciones e los atentados que cometen contra el orden público. ?Comprendéis lo que quiero decir?
El joven monje: Sí. Aunque , siendo así, aquellos que han visto quemar a sus hermanos quemarán a su vez los demás, y así sucesivamente. (en voz baja). Uno tras otro, todos estarán seguros de poseer la verdad...Y entonces, ?para qué habrán servido todos esos millones de muertos?

extracto diálogos, La Voie Lactée (1969), de Luís Buñuel

sexta-feira, novembro 17, 2006

the wonderful wizard of oz

The Wizard of Oz foi, com toda a certeza, um dos filmes mais vistos durante a minha infância. A minha mãe era não apenas uma ferrenha da Judy Garland mas também totalmente fanática do filme, que vimos juntos pelo menos uma cinco vezes. Lembro-me de sairmos do cinema de mão dada a trautear, We're off to see the Wizard / The Wonderful Wizard of Oz / We hear he is a whiz of a Wiz / If ever a Wiz there was. / If ever, oh ever a Wiz there was / The Wizard of Oz is one because / Because, because, because, because, because / Because of the wonderful things he does / We're off to see the Wizard / The Wonderful Wizard of Oz!. Lembro-me de uma vez ao regressarmos a casa de carro eléctrico eu na minha inocência de menino de sete anos ter dito á minha mãe que o mundo de Oz era um mundo imaginário em que era bom ser criança e ser feliz tinha(!) -achava eu- de se inventar (foi a palavra...) a felicidade para o mundo a sério. Lembro-me de a minha mãe sorrir levemente e fazer-me uma festa na cabeça, depois o seu olhar desviou-se para a janela do carro. A vida a correr lá fora, num domingo qualquer do ano de 1964.

quinta-feira, novembro 16, 2006

lembrar visconti (3)

(Outro exemplo: Visconti)
Trabalhava como um doido, ocultando o seu sofrimento. A doença humilha, agora era de uma cadeira de rodas que dirigia os actores, alterava a decoração, discutia as luzes. Trabalha para não morrer, dizem os amigos. Horas e horas para escolher o tom de um cortinado, a maneira de erguer um véu à altura da boca, a cor das maçãs no linho baço da toalha, com esse amor à realidade que só conhece quem a sabe tão fugidia. Abandonada a câmara, era ainda no trabalho que pensava ao ler duas ou três páginas de Proust, Stendhal. Apagara a luz, depois de ter ordenado que retirassem as floress do quarto, o aroma das gardénias começava a enjoá-lo. Mas o sono demorava. Tinha a cabeça cheia de imagens, sobretudo de sua mãe, surgindo no meio de uns versos de Auden, que fizera seus nos últimos tempos. When you see a fair form chase it / And if possible embrace it / Be it a girl or a boy... Adormecia tarde e era o primeiro a despertar. Chamou para que o lavassem, o vestissem. Recomeçaria uma vez mais a cena, com nova iluminação. O rosto de Tulio Hermil deveria estar na penumbra, só as mãos francamente iluminadas. Porque é nas mãos... Não, não, as mãos são inocentes. É no espírito que tudo tem origem; mesmo no amor; mesmo o crime. Excepto a morte. A morte era bem no seu corpo que principiava. Ali estava ela, tomamndo conta de si. Via-a crescer a cada instante, essa cadela. de súbito tornara-se real, os dentes afiados, a baba escorrendo, o salto iminente. Em grande plano
Eugénio de Andrade
in O Bosque Sagrado, Edição Gota de Água, Maio 1986

quarta-feira, novembro 15, 2006

reflexo de redução do mundo real

Depois da antológica cláusula-lei-da-rolha imposta protocolarmente a favor da abstinência a eventuais críticas às políticas ou actos da câmara do Porto eís que surge uma decisão surpreendente do autarca-monarca da cidade invicta: suprimir as subvenções -a partir do próximo ano- aos agentes culturais!
Na sua expressão mais simples, Rui Rio pôs a nú qual a concepção do mundo ( e dos valores) a que pertence. Doutrináriamente falando estamos pois esclarecidos sobre os traços essenciais deste sinistro fenómeno vindo de um poder autárquico democrático.
Mais grave é a complacência do poder político e, pior ainda, da dita "inteligenzia" deste país.

segunda-feira, novembro 13, 2006

palavras de josé afonso


Utopia
Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
E teu a ti o deves
lança o teu
desafio
Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio este rumo esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?
in Como Se Fora seu Filho, edição Orfeu, 1983, LP- 33 r.p.m.