sábado, julho 15, 2006

Luminosidades(2)

Guardo na memória coisas das mais bonitas com que construímos o sonho;
como, por exemplo, utopia. Lembro-me de o tempo não parecer ter a dimensão real , parecer a eternidade, lembro-me de abrires os olhos ao acordar e sorrires um sorriso que nunca mais vi. Lembro-me das noites que não eram noites mas sim anos, muitos anos, e em que nos entregavamos à doçura das palavras que nunca mais diremos. Lembro-me de que não eramos ásperos, amargos ou violentos e de nunca nos termos sentido sufocados. Lembro-me do pão quente na madrugada, das zangas serem passageiras, dos passeios a pé pela cidade teminarem no cacau da ribeira ou na "vigilância revolucionária"; dos passeios de cacilheiro, de fazermos "joints" que fumávamos à socapa da família; lembro-me da noite de fim de ano num dos molhes da caparica, dos concertos do Zeca, do Zé Mário, do Fausto e do Cília, do branco das paredes de Beja, dos fins de tarde em Almoçageme, da praia ser só nossa, de sobrevivermos ao cansaço e ao extase; lembro-me da cerveja fresca manhã fora servir para nos dar força e alento; lembro-me de chorarmos num canto da sala a morte do amigo do peito; lembro-me de trocarmos segredos à mesa do café do bairro, lembro-me das festas na cooperativa do Alentejo, das matinées no Satélite ou no 444 a ver Godard's, lembro-me. De não existir rotina, de haver o hábito (ou a obrigação) de ser criativo (e inventivo), de lermos muito Sartre ("socialismo ou barbárie"), Marx e os clássicos russos, Hemingway, Steinbeck, Jack London, Camus, Kafka...,; lembro-me de gostarmos das fotos de Nadar,André Kertész , Klein e Mapplethorpe, de amarmos loucamente até à insanidade, de fazermos filmes em Super8 a imitar os cineastas da nouvelle vague, de assistirmos às peças dos Bonecreiros e da Comuna, do banho nocturno vestidos na praia de Armação ou do Ferragudo numa noite de outono, de adormecermos a ouvir Pete Seeger, Joplin ou Chico Buarque, e lembro-me de ficarmos deitados na relva a olhar o céu à espera de vermos estrelas candentes; lembro-me de às vezes vaguearmos horas a fio pela serra de sintra em busca do lugar ideal para um piquenique. Lembro-me de nunca termos renunciado nem traído o sonho -nem nos piores momentos- e termos desejado tudo, tudo o que a imaginação nos permitiu. Lembro-me, por exemplo, de nunca nos termos contentado com o infinito. E porque raio nós nos havíamos de contentar com o infinito?
Oeiras, Fevereiro de 97
(dez anos depois da morte de José Afonso)

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