terça-feira, julho 18, 2006
dizem que morreste
Meu Querido Amigo,
Isto não é fácil de explicar. Andámos estes ultimos dezoito anos a vermo-nos por acaso como se vivessemos os dois em terras distantes, sem tempo para nos aturarmos um ao outro pior, sem vontade de forçar a clausura em que se foi caindo (eu mais do que tu, reconheço-o) à conta da sacana da rotina que cansa-mata, da apatia e da renúncia que se foram instalando laboriosamente apesar da resistência, aqui e acolá. Não era fácil, Miguel, fazer de conta, ignorar (sei lá) que o teu olá estás bom, seguido de, ainda estás a aturar os gajos da FNAT? e, o rematar, não queres ir lá a casa, queria dizer 'bora beber uns copos, partilhar um joint, sonhar-fazer-um-filme, ler páginas do teu próximo livro... Que tinha eu para dar, senão desculpas (algumas sem lógica) para tudo ficar para outro dia? Oportunidade? Disponibilidade? Cansaço? Foda-se! Sempre amámos e sempre tivémos o cérebro com as mesmas imagens!
Isto não é fácil de (me) explicar. Como sabes, sempre fui um pouquinho dessarrumado aqui no lado esquerdo do peito, por razões que conheces , mas nunca me esqueci do amigo-amigo, daquele com quem se partilhou momentos profundos, daquele que esteve a nosso lado nos combates que foi preciso travar, daquele que foi recíproco, leal, afectivo. Nunca esqueci aquele verão de 77 na Ponte de Sôr de projectores de filme às costas a mostrarmos cinema português em dez localidades onde cada sessão nocturna era antecedida de festa á entrada das vilas, lembras-te?; dos miúdos correrem alegres atrás (e ao lado) do velho renault da Junta Central das Casas do Povo, das dezenas de braços no ar a voluntariarem-se para ajudar a carregar as bobines e a máquina, dos comentários, das palmas e dos assobios enquanto a fita corria na tela. Lembro-me duma noite teres aparecido na residencial com a roupa a fumegar e a cheirar a madeira queimada porque tinhas ido ajudar apagar um incêndio próximo do celeiro onde exibias o pai tirano?. Lembro-me bem de nos deliciarmos nas tardes encaloradas com a leitura, lembro-me que foste tu que me ofereceste, no meu aniversário, o cem anos de solidão, em formato bolso da europa-américa comprado no café central e lembro-me que foi por esses dias que a ideia de fazermos a adaptação do refúgio perdido do Soeiro ganhou forma... .
É tanto aquilo que de ti para mim passou que me dói o tempo que não tivemos (não soubémos) para ter ainda tanto mais . Olho a paisagem instalada fora da minha janela e oiço sons, palavras, risos, gestos do que serias.Isto não está a ser fácil. Não, porque desejaria ter-te dito o quanto gostei, -mais do que aquilo que te disse um dia-, do teu Além Maar (que visualizei em filme, como tu havias visualizado também) que me deste o privilégio de ir lendo à medida que o ias escrevendo, anos antes de a Ler te atribuir o prémio e esse facto ter deixado muita (alguma boa...) gente estupefacta e também possessa, coitados.
Isto não é fácil, Miguel. A nossa ultima conversa, no jantar de aniversário do Jorge, ficou a pairar...
E chega, porque ainda não consegui encaixar que morreste. Para mim continuas vivo!
Um forte abraço, Miguel
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1 comentário:
gostei do seu texto
desse lado esquerdo desarrumado
mas quem falou de coincidências?
(tanto fora, tanto dentro)
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