quarta-feira, fevereiro 13, 2008

revisitar brecht (2)


Elogio da Dialéctica

A injustiça avança hoje a passo firme
Os tiranos fazem planos para dez mil anos
O poder apregoa: as coisas continuarão a ser como são
Nenhuma voz além da dos que mandam
E em todos os mercados proclama a exploração; isto é apenas o meu começo
Mas entre os oprimidos muitos há que agora dizem
Aquilo que nòs queremos nunca mais o alcançaremos
Quem ainda está vivo não diga: nunca
O que é seguro não é seguro
As coisas não continuarão a ser como são
Depois de falarem os dominantes
Falarão os dominados
Quem pois ousa dizer: nunca
De quem depende que a opressão prossiga?
De nòs
De quem depende que ela acabe?
Também de nòs
O que é esmagado que se levante!
O que está perdido, lute!
O que sabe ao que se chegou, que há aì que o retenha
E nunca será: ainda hoje
Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã
Foto: Statchka, de Sergei M. Eisenstein (URSS, 1924)

domingo, fevereiro 10, 2008

dores de crescimento (8)



Carta a um amigo ausente:Com Humphrey Bogart, Maria Bethania, Boris Vian, e outros, no bar "Zodíaco"ou, um "big close-up" da Amizade

Bethania entra no "zodíaco" já atrasada. Atira um sorriso para a nossa mesa e pede um "gimlet" duplo que de caipirinhas anda farta. Humphrey Bogart está sentado na ponta e sorri-lhe de esguelha, com a beata acesa ao canto da boca. E, antes que um inesperado travelling ponha a nú a face irreverente de Boris Vian eu, como quem não quer a coisa, começo a trautear um jeito estúpido de te amar. Bethania ergue o olhar e diz-me com emoção que as palavras andam a escapar-lhe diariamente entre os dedos . Aproveito para dar uma gole na bagaceira: nem sequer a tinha ouvido dizer aquilo.Boris Vian pergunta-me baixinho se o Bogey ainda está á espera da Laureen Bacall. Encolho os ombros e numa atitude irrefletida levanto-me e convido a Bethania para dançar sem me dar conta que o Rão (Kyao) ainda não tinha começado sequer a soltar o sax da maleta. Afinal, diz Bogart, ela (referindo-se a Bacall) não pode vir: mandou-me um recado a dizer para bebermos por ela. Quantos? quiz saber o Boris de caneta em punho... .Bethania, que parece nada ter a ver com isto começa a falar-me do Chico Buarque que anda a filmar com o Milton.Interrompo Bethania para lhe contar uma história insólita, mas verdadeira. Esta, do parágrafo seguinte.Era uma noite fria de outono. Havia um jantar em casa do Xana O'Neill (filho) ali junto ao Princípe Real. Como de costume muita gente. O João (filho do Fernando Lopes), grande amigo do Xana, andava eufórico como nunca. As conversas eram as triviais do momento -sobre a guerra Irão-Iraque, os Baader-Meinhoff, insurrecçõs intelectuais (para calar o Proença de Carvalho), fotografia e arte, cinema (os cicclos do foz e do ar.co), copos, "directas", considerações sobre o corpo da Ana Maria, uma amiga com enormes atributos(!) e, -inevitável-, o último filme de Resnais ("soltar o último sarcasmo, beber o último trago, conservar a vida e morrer"). De súbito, a conversa começou a ficar tão quente que fomos até á varanda para arrefecer. Olhámos: seis tipos andavam à navalhada por causa de uma mulher que exasperava, em gritaria histérica, dentro de um opel-escort cor e cenoura. Chega a polícia nos "nivea" do costume :saltam do carro de bastão e começam a aviar a torto e a direito, um terceiro dá gosto ao dedo com umas rajadas de G3 para o ar e, como sempre acontece depois, vai tudo preso: os tipos, a mulher e até o senhor Gomes lojista da zona que parara a ver. Tudo para a esquadra do chefe"bailarino" no bairro alto.Um travesti da zona pede aos gritos que o levem preso também , enquanto o acompanhante se acerca dum polícia pedindo-lhe um cigarro e recebe como resposta ordem gritada para desandar e já. Bogart interrompe-me: conservar a vida ou morrer, este é o nosso maior drama. E conta:Quando andava com a Laureen (ou seria com a Ingrid?) as coisas não eram piores. Chegava-se ao bar e antes que o (Howard) Hawks businasse qualquer coisa menos terna, bebia dois, três whisky's. Era quando o director de fotografia aproximava de mim o medidor de luz, depois começavamos. Era duro, e eu nunca tive dúvidas que enquanto a Laureen (ou seria a Ingrid?) me abraçava efusivamente, a morte aguardava-me lá fora, em technicolor ou a preto e branco. Enquanto isso não acontecia o Hawks fazia movimentar a grua e o operador fazia o combinado: enquadrava os últimos instantes de vida em plano americano, sempre.Bethania bebe mais um gole do gimlet. Olha para Boris Vain com ternura e diz-lhe: gosto de ver o barman misturar a bebida e poisar o copo no balcão com o pequeno guardanapo bem dobrado ao lado. Gosto de a saborear sem pressa, conclui sorridente.De facto, diz Bogart, ainda não tinha pensado nisso dessa maneira... comigo é sempre tudo muito rápido. É agora, aviso eu baixinho, ao mesmo tempo que as luzes perdem intensidade e a sala mergulha na quase escuridão. Ouvem-se os primeiros sons de "Líbano". Rão (Kyao) está em força. O Duarte está ao piano. Começam bem. Bethania apaga o cigarro e reclina-se na cadeira, Bogart volta o olhar para o palco e Boris Vian toma notas num guardanapo de papel.Levanto-me , peço desculpa, e vou ao telefone da pequena cabine. Ligo para longe. Falo como se falasse para mim próprio... .

Lisboa, entre-campos, verão de 1981.
foto: to have not to have